F. Ponce de León.
A vida humana – na verdade, toda a vida – é poesia. Nós a vivemos inconscientemente, dia a dia, fragmento a fragmento, mas na sua totalidade inviolável, ela nos vive.
– Lou Andreas-Salomé.
Uma sugestão de leitura para o fim de semana: Lou – Minha Irmã, Minha Esposa (Jorge Zahar, 1986 [1962]), de H. F. Peters. Trata-se de uma biografia da russa Lou Andreas-Salomé (1861-1937), a primeira ‘mulher moderna’ [1].
A leitura dos 21 capítulos é assombrada por uma só pergunta: como foi possível a uma mulher do século 19, ainda que inteligente, criativa, original, relacionar-se com homens de gênio sem ser dominada por eles?
Homens de gênio? Sim, estou a me referir aqui a gente do calibre de (ordem alfabética) S. Freud (1856-1939), F. Nietzsche (1844-1900), P. Rée (1849-1901) e R. M. Rilke (1875-1926). Sem contar, claro, o próprio marido dela, F. C. Andreas (1846-1930). (Fulano era depressivo, sicrano era louco, beltrano era irascível? Talvez, mas ainda assim eram geniais, sobretudo quando tinham uma caneta em uma das mãos e uma folha de papel na outra.)
O prefácio do livro é um convite irresistível à leitura. Reproduzo aqui o primeiro parágrafo (grafia original; extraído daqui):
Em 1937 morreu na cidade universitária alemã de Göttingen uma mulher notável. Tinha 76 anos e era viúva do professor Andreas, sendo porém muito mais conhecida pelo nome de solteira: Lou Salomé. A casa onde morreu está precariamente empoleirada nas íngremes encostas do Hainberg, a cavaleiro da cidade. Da sacada de seu gabinete de trabalho, Lou tinha uma vista magnífica do amplo vale do rio Leine, lá [embaixo], e dos montes cobertos de bosques que se estendiam pelos horizontes ocidental e meridional. Por mais de 30 anos, ela compartilhara essa casa – mas não o leito conjugal – com o marido, e por mais de 30 anos olhou lá de cima para Göttingen – ‘famosa pela sua universidade e suas salsichas’ – com cordial indiferença. Ressentidos com a distância em que ela se mantinha, e sem saber o que pensar de uma esposa de professor que não participava da vida social da cidade ou da universidade, os bons burgueses de Göttingen espalharam todos os tipos de boatos a respeito dela. Suas mulheres, sabendo que quando mais jovem Lou freqüentemente viajava em companhia de outros homens que não seu marido, chamaram-na ‘a Feiticeira de Hainberg’.
Reza a lenda que os homens de letras que a conheciam, nove meses depois davam à luz a um livro novo. Ora, ora, ora, quem diria. Seria ela então uma fonte de inspiração assim tão arrebatadora? O que exatamente transmitia tanta inspiração, a presença física, a voz ou a própria paixão dela pela vida? Ou tudo isso não passaria de mero feitiço, como gostam de difamar os integrantes de seitas reacionárias, tipo MBL e Brasil Paralelo? Sim, nos últimos anos de vida, o fuxico que circulava no vilarejo, sobretudo entre as mulheres, dava conta de que ela era uma víbora, uma feiticeira – ‘a Feiticeira de Hainberg’.
De resto, o livro de Peters – um volume de apenas 271 páginas e que a gente devora em um final de semana – pode ser também uma ótima sugestão de presente, sobretudo para aquele seu amigo de pescoço queimado que trata as mulheres como ‘objeto de cama e mesa’; isso quando não as vê como ‘víboras traiçoeiras’ ou coisas ainda pior.
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NOTA
[1] Assim que digitei ‘russa’, uma dúvida tomou conta da minha cabeça: Qual seria a opinião da saudosa Elke ‘Maravilha’ Grünupp (1945-2016) a respeito da sua conterrânea? (Elke teria nascido em território alemão, mas se considerava russa de nascença.)
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