31 julho 2024

A bainha das vestes do Altíssimo

Agnes Mary Clerke

O que tem sido feito é pouco – mal e mal começamos; e, no entanto, é muito em comparação com o vazio total de um século atrás. E nosso conhecimento, por sua vez, parecerá – estamos certos disso – a mais crassa ignorância para aqueles que virão depois de nós. Não deve ser desprezado, contudo, pois através dele conseguimos apalpar a bainha das vestes do Altíssimo.

Fonte: Sagan, C. 1985 [1979]. O romance da ciência. RJ, F Alves. Excerto de livro publicado em 1885.

29 julho 2024

A máquina de guerra, sabotagem e propaganda sionista segue a matar crianças e mulheres palestinas

Felipe A. P. L. Costa [*].

As ruminações filosóficas e os códigos morais talvez sirvam para lustrar os móveis. Temo, porém, que a madeira já esteja estragada.
Poh Pin Chin (1909-1984).

Entre 7/10/2023 e a manhã de ontem (28/7/2024), mais de 39,3 mil palestinos (ver aqui) foram assassinados pelo exército de Israel em Gaza. Desse total, ao menos 15 mil eram crianças, incluindo bebês e recém-nascidos. Além de criminosas, são estatísticas absolutamente vergonhosas.

Por que as forças sionistas estão a matar tantas crianças indefesas? Além dos assassinatos a bala ou a bomba, muitos bebês estão morrendo de inanição induzida (e.g., aqui).

Não custa lembrar: (1) Seres humanos são animais e não fazem fotossíntese; portanto, se formos privados da ingestão de alimentos, sucumbiremos em alguns dias; e (2) nenhum neonatal humano sai do ventre materno empunhando armas ou explosivos.

AL JAZEERA BRASIL.

A mídia brasileira, claro, não tem (nunca teve) vocação para cobrir atrocidades dessa magnitude. Prefere reportar sobre o dia a dia de alguma família de origem brasileira que se arrependeu de ir morar em terras roubadas. Seja porque a família teve os vidros das janelas quebrados depois de um ataque (ou seria contra-ataque?) dos terroristas do Hamas, seja porque a família está com saudades dos parentes e amigos que ficaram em Terra Brasilis.

Uma sucursal da Al Jazeera no Brasil seria muito bem-vinda. Seria bom não só para os profissionais da notícia (quanto mais empresas jornalísticas, mais as condições de trabalho e os salários tendem a melhorar), mas seria bom, sobretudo, para os consumidores. (O jornalismo internacional feito por aqui sempre foi muito estreito e muito raso – já dizia o saudoso Newton Carlos (1927-2019) [ver aqui]. Ultimamente, porém, as coisas pioraram muito. Quando o assunto é Oriente Médio, então, aí a coisa desanda de vez. Mais do que revoltante, chega a ser constrangedor.)

“SOMOS MELHORES QUE OS ÁRABES”.

O israelense médio odeia seus vizinhos árabes (ver artigo ‘Somos um povo melhor que os árabes’). É um problema antigo. Mas não é um ódio inato, genético; é algo que é forjado culturalmente. Um ódio que começa a ser construído na infância.

Veja: ódio, menosprezo e mentiras são irmãos e andam juntos. No caso de ideologias racistas em movimento, como é o caso do sionismo, a chave de tudo está na propaganda. É um trabalho meticuloso e perverso. Veja só: as sementes da mentira e do menosprezo pelos vizinhos são plantadas na cabeça das crianças dentro do ambiente escolar. É a perversão em alto grau, sobretudo em razão do peso que a escola tem na vida das crianças. (Crianças pequenas confiam nas professoras, assim como confiam nas mães.)

Odiar os vizinhos – “esses árabes sujos e traiçoeiros” – é apenas um pré-requisito. O próximo passo é matá-los ou saqueá-los, a exemplo do que os nossos ancestrais costumavam fazer. Sim, todas essas barbaridades – saques, profanações, assassinatos etc. – estão a ser praticadas pelos sionistas em Gaza. Mas não foram inventadas por eles. Não. Essas coisas estão conosco desde tempos imemoriais.

CODA.

Em meio a uma tradição histórica tão sangrenta, sou de opinião que o único sentido honesto para o termo civilização seria pensar em uma sociedade planetária sem exércitos e sem armas. Não sei dizer se isso será alcançado algum dia. Por ora, no entanto, posso dizer o seguinte: mais do que qualquer outro estado moderno, o estado de Israel encarna o ideal oposto. Trata-se de um estado belicoso; uma máquina de sabotagem e propaganda que odeia a paz e se alimenta da morte.

*

NOTA.

[*] Este artigo contém trechos extraídos e adaptados do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (no prelo). Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir pacotes com os quatro livros do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir o pacote ou algum volume específico ou para mais informações, faça contato pelo endereço felipeaplcosta@gmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros, ver aqui.

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28 julho 2024

O lobo de Gubbio


[Nicolas] Luc-Olivier Merson (1846-1920). Le loup d’Agubbio. 1877.

Fonte da foto: Wikipedia.

27 julho 2024

Pré-história e arqueologia: 90 graus de diferença

André Leroi-Gourhan

Muito já foi dito e escrito sobre os dois caminhos da pesquisa pré-histórica, o que conduz ao conhecimento cronológico através da estratigrafia e o que se dirige no sentido da etnologia pela atualização sistemática das superfícies frequentadas pelo homem fóssil; aquele onde os cortes são lidos e aquele onde os solos são decifrados. Seria difícil estabelecer a anterioridade de um dos dois modos de compreensão do documento exumado em relação ao outro, ou mesmo fixar a data de seu aparecimento há cerca de um século, pois toda escavação, seja ela realizada para qualquer outra coisa que não as pesquisas arqueológicas, forçosamente revela um corte e diferentes aspectos horizontais segundo os terrenos que são trespassados. A exploração de minas e pedreiras permitiu adquirir essa visão fundamental bem antes do nascimento da preocupação de retirar do solo os testemunhos do passado dos homens. Num outro campo, também bastante banal há muitos milênios, a violação de sepulturas exigiu frequentemente dos seus executores (infelizmente condenados ao anonimato) conhecimento empírico sobre a organização do meio subterrâneo nas três dimensões. A caça aos tesouros das minas e às joias escondidas poderia, portanto, ser considerada como o antepassado desastroso, mas ainda bem vivo, da arqueologia moderna. A partir do século XVIII, com uma bagagem metodológica ainda pouco sofisticada, os arqueólogos, em sentido amplo, dispuseram dos dois meios necessários para compreender a totalidade do fato arqueológico: a visão vertical da estratigrafia e a visão ‘horizontal’ das superfícies sobre as quais os acontecimentos do passado tiveram lugar. Por razões as quais não seria inútil determo-nos por um instante, os pré-historiadores e os arqueólogos clássicos, desde o início do século XIX, tomaram, cada um, uma das duas partes que se ofereciam: os pré-historiadores adotando a estratigrafia sem se preocupar, salvo algumas exceções, com os aspectos horizontais, ao passo que os arqueólogos examinavam os solos das cidades e dos templos que exumavam, mas, ainda aqui, considerando, salvo algumas exceções, mais como um obstáculo que como um documento a enorme quantidade de entulhos acumulada sobre o sítio após o abandono do monumento que se propunham a descobrir. Os materiais do pré-histórico, principalmente feitos de pedras talhadas ou de ossos de animais, levaram os investigadores a procurarem modelos a partir da geologia e da paleontologia, as quais se forjavam poderosos instrumentos estratigráficos; os arqueólogos que trabalhavam com materiais mais civilizados, em sentido etimológico, tomaram naturalmente a esteira da arquitetura. Cada um aperfeiçoou seus métodos, mas, pelo menos na França, até um passado ainda recente, pré-história e arqueologia são vistas como fundamentalmente diferentes nas suas finalidades e nos seus meios. De fato, trata-se apenas de uma questão de proporções, e o arqueólogo, se deseja renovar a informação, tem tanta necessidade do socorro da zoologia e da estratigrafia quanto o pré-historiador. De maneira semelhante, este último, se nunca teve contato com monumentos consideráveis, tem mais que qualquer um necessidade de uma percepção direta do espaço habitado. Poderíamos resumir essa situação recente considerando que, tanto para um como para outro, só faltou ampliar verticalmente em noventa graus o campo de seus interesses, um para cima e o outro para baixo.

Fonte: Leroi-Gourhan, A. 1979. Os caminhos da história antes da escrita. In: J. Le Goff & P. Nora, orgs. História: novos problemas, 2ª ed. RJ, Francisco Alves.

25 julho 2024

Celebração da consciência

Ivan Illich

Eu e muitos outros, conhecidos ou desconhecidos meus, a vós apelamos:

– para exaltar nosso poder conjunto de prover todos os seres humanos do alimento, roupa e abrigo que lhes são imprescindíveis para que possam desfrutar do prazer de viver;

– para que vos junteis a nós, a fim de descobrir o que devemos fazer para utilizar a humana capacidade de criar a humanidade, a dignidade e a alegria para cada um de nós;

– para que vos torneis responsavelmente conscientes de vossa capacidade pessoal para exprimir vossos verdadeiros sentimentos e para vos reunirdes a nós nesta expressão.

Somos forçados a viver essas mudanças: não nos é dado planejar o nosso caminho para a humanidade. Cada um de nós, e cada um dos grupos em cujo seio vivemos e trabalhamos, deve se tornar o protótipo da era que desejamos criar. Os muitos modelos que se hão de desenvolver deverão proporcionar a cada um de nós um ambiente onde seja possível exaltar nossa potencialidade – e descobrir o caminho para um mundo mais humano.

Fonte: Illich, I. 1976 [1973]. Celebração da consciência. Petrópolis, Vozes.

24 julho 2024

O que forma uma sociedade?

Émile Durkheim

Uma sociedade não é constituída meramente pela massa de indivíduos que a compõem, o território que ocupam, as coisas que usam e os movimentos que executam, mas acima de tudo está a ideia que ela forma de si mesma.

Fonte: Alves, R. 1979. Protestantismo e repressão. SP, Ática. Excerto de livro originalmente publicado em 1912.

22 julho 2024

Caravana


[Jean-Baptiste] Paul [Hippolyte] Lazerges (1845-1902). Caravane. 1901.

Fonte da foto: Wikipedia.

21 julho 2024

A origem do estado

Robert L. Carneiro

Durante os primeiros 2 milhões de anos de sua existência, os humanos viveram em bandos ou aldeias, as quais, pelo que nós sabemos, eram completamente autônomas. Demorou talvez até 5000 aC para que as aldeias começassem a se agregar em unidades políticas maiores. Porém, uma vez iniciado, o processo de agregação continuou a um ritmo cada vez mais rápido, levando à formação, por volta de 4000 aC, do primeiro estado da história. (Quando falo de estado, estou a me referir a uma unidade política autônoma, abrangendo muitas comunidades dentro de seu território e tendo um governo centralizado com o poder de cobrar impostos, recrutar homens para o trabalho ou para a guerra, e decretar e fazer cumprir leis.)

Fonte: Costa, FAPL. 2024 [no prelo]. A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência. Viçosa, Edição do Autor. Extrato de artigo originalmente publicado em 1970.

19 julho 2024

A torre de marfim brasileira é de palha?

Felipe A. P. L. Costa

Em memória de M. E. (1965-2023), cuja orientadora um dia reclamou que ela era uma aluna com iniciativa.

RESUMO. – O presidente da República esteve em Campinas (SP), em 2/7/2024. Participou, entre outras coisas, do lançamento da pedra inaugural do Projeto Orion (ver aqui). Foi para mim uma grata surpresa, pois eu não tinha ideia de que um projeto dessa natureza e magnitude estivesse a ser implementado. Os leitores não familiarizados com o assunto talvez não saibam, mas os melhores e mais seguros laboratórios existentes hoje no país não ultrapassam o chamado nível 2 de segurança (BSL-2, na sigla convencional em inglês). Nunca houve por aqui algo parecido com os níveis 3 ou 4 (BSL-3 e BSL-4). Garantir o funcionamento de laboratórios BSL-3 e BSL-4 é um empreendimento delicado; depende, entre outras coisas, de protocolos rigorosos cujo nível de exigência está muito além do nível que os laboratórios BSL-2 são capazes de atender. Laboratórios BSL-4, por exemplo, manipulam organismos potencialmente letais e contra os quais nós ainda não dispomos de qualquer tipo de defesa (e.g., vacinas). Ouso dizer que os riscos decorrentes da operação desses laboratórios são comparáveis aos riscos associados à operação de uma usina nuclear. Desconfio – apenas desconfio – que ainda não haja gente qualificada em quantidade suficiente para conduzir com sucesso um empreendimento dessa magnitude em terras brasileiras. Ao contrário do que imaginam alguns, diplomar mestres e doutores não equivale a produzir cientistas. E o que nós fazemos hoje é distribuir diplomas. A rigor, levando em conta que (i) o número de pós-graduados diplomados a cada ano não para de crescer; e (ii) o tempo de formação dos novos diplomados é cada vez menor; deveríamos nos preocupar mais com o efeito contrário: há uma progressiva deterioração na formação dos novos mestres e doutores, assim como na qualidade dos trabalhos acadêmicos produzidos por eles. A situação me parece delicada e preocupante. Mantidas as circunstâncias atuais, e na hipótese de que o Projeto Orion vá adiante e as instalações sejam concluídas, prevejo que será necessário recrutar gente (brasileiros ou não) que hoje trabalha fora do país.

[Para ler o artigo completo, clique aqui.]

18 julho 2024

Raciocínio e a solução de problemas complexos

V. G. Dethier & Eliot Stellar

A distância que vai de questões sobre aprendizado e memória, a questões sobre solução de problema, raciocínio e mesmo inteligência é muito pequena. Os mecanismos neurológicos e evolutivos básicos em jogo são os mesmos, embora os processos comportamentais sejam muito mais complexos. De fato, devido à complexidade comportamental, é mais provável encontrarmos mudanças notáveis na série filogenética e compreendermos mais claramente o cérebro e as relações comportamentais no estudo do raciocínio e solução de problema.

Raciocínio é a capacidade de resolver problemas complexos, com alguma coisa além de simples modificações por tentativa e erro, hábito ou estímulo-resposta. Reconhecemos esta capacidade no homem como a habilidade de desenvolver conceitos, comportar-se de acordo com princípios gerais e reunir elementos de uma experiência anterior em uma nova organização, de maneira bem independente da forma física particular que um problema tome, ou dos elementos sensoriais ou motores específicos envolvidos na situação. O que observamos nos animais? Anteriormente, descrevemos muitos casos de aprendizado complexo, nos quais um organismo tinha de manipular muitos estímulos simultaneamente e fazer uma sequência complexa de respostas discriminativas. Agora queremos ver o desempenho em situações em que senhas sensoriais específicas e hábitos específicos não são críticos para a solução de um problema.

Fonte: Dethier, V. G. & Stellar, E. 1973 [1970]. Comportamento animal. SP, Blücher & Edusp.

17 julho 2024

Utilitarismo e preços

I. G. Puzatchenko

A noção de preço só surge quando existe uma dualidade nas relações, ou seja, para obter alguma coisa é preciso ceder algo. Nessas relações, o preço não pode ser rigorosamente fixado. É determinado pelas utilidades dos fenômenos comparados e pela expressão dos fenômenos no espaço e no tempo. [...]

Se o homem pudesse determinar e medir as utilidades de todos os fenômenos da natureza, o problema do preço de cada um deles, em cada caso particular, seria resolvido por meio de comparação direta. No entanto, isso é impossível. A utilidade não é uma característica absoluta do fenômeno. Ela só se manifesta em consequência do aproveitamento desse fenômeno pelo próprio homem em sua vida. É possível citar múltiplos exemplos de fenômenos da natureza, antes inúteis para o homem, que se tornaram excepcionalmente úteis em consequência da descoberta de suas particularidades pelo próprio homem e da sua inclusão na esfera da atividade humana. Aliás, a evolução de todo ser vivo, inclusive do homem, é um processo permanente de revelação de novas utilidades.

Fonte: Puzatchenko, I. G. 1994. In: Müller-Plantenberg, C. & Ab’Sáber, A. N., orgs. Previsão de impactos. SP, Edusp.

16 julho 2024

Além da psicologia

Otto Rank

Parece difícil, para o indivíduo, perceber que existe uma divisão entre as necessidades espirituais e as necessidades puramente humanas de cada um, e que a satisfação ou a realização de cada uma delas tem que ser encontrada em diferenças esferas. De maneira geral, vemos os dois aspectos inapelavelmente confundidos nas relações modernas, onde uma pessoa é transformada em juiz divino do bem e do mal que há na outra pessoa. A longo prazo, esse relacionamento simbiótico se torna prejudicial para ambas as partes, pois ser Deus é tão insuportável quanto continuar sendo um escravo total.

Fonte: Becker, E. s/d [1973]. A negação da morte. RJ, Record. Excerto extraído de livro publicado em 1941.

14 julho 2024

Paisagem de inverno


Frits Thaulow (1847-1906). Norsk vinterlandskap. 1890.

Fonte da foto: Wikipedia.

13 julho 2024

A viúva de Hainberg: musa inspiradora ou víbora traiçoeira?

F. Ponce de León.

A vida humana – na verdade, toda a vida – é poesia. Nós a vivemos inconscientemente, dia a dia, fragmento a fragmento, mas na sua totalidade inviolável, ela nos vive.
– Lou Andreas-Salomé.

Uma sugestão de leitura para o fim de semana: Lou  Minha Irmã, Minha Esposa (Jorge Zahar, 1986 [1962]), de H. F. Peters. Trata-se de uma biografia da russa Lou Andreas-Salomé (1861-1937), a primeira ‘mulher moderna’ [1].

A leitura dos 21 capítulos é assombrada por uma só pergunta: como foi possível a uma mulher do século 19, ainda que inteligente, criativa, original, relacionar-se com homens de gênio sem ser dominada por eles?

Homens de gênio? Sim, estou a me referir aqui a gente do calibre de (ordem alfabética) S. Freud (1856-1939), F. Nietzsche (1844-1900), P. Rée (1849-1901) e R. M. Rilke (1875-1926). Sem contar, claro, o próprio marido dela, F. C. Andreas (1846-1930). (Fulano era depressivo, sicrano era louco, beltrano era irascível? Talvez, mas ainda assim eram geniais, sobretudo quando tinham uma caneta em uma das mãos e uma folha de papel na outra.)

O prefácio do livro é um convite irresistível à leitura. Reproduzo aqui o primeiro parágrafo (grafia original; extraído daqui):

Em 1937 morreu na cidade universitária alemã de Göttingen uma mulher notável. Tinha 76 anos e era viúva do professor Andreas, sendo porém muito mais conhecida pelo nome de solteira: Lou Salomé. A casa onde morreu está precariamente empoleirada nas íngremes encostas do Hainberg, a cavaleiro da cidade. Da sacada de seu gabinete de trabalho, Lou tinha uma vista magnífica do amplo vale do rio Leine, lá [embaixo], e dos montes cobertos de bosques que se estendiam pelos horizontes ocidental e meridional. Por mais de 30 anos, ela compartilhara essa casa – mas não o leito conjugal – com o marido, e por mais de 30 anos olhou lá de cima para Göttingen – ‘famosa pela sua universidade e suas salsichas’ – com cordial indiferença. Ressentidos com a distância em que ela se mantinha, e sem saber o que pensar de uma esposa de professor que não participava da vida social da cidade ou da universidade, os bons burgueses de Göttingen espalharam todos os tipos de boatos a respeito dela. Suas mulheres, sabendo que quando mais jovem Lou freqüentemente viajava em companhia de outros homens que não seu marido, chamaram-na ‘a Feiticeira de Hainberg’.

Reza a lenda que os homens de letras que a conheciam, nove meses depois davam à luz a um livro novo. Ora, ora, ora, quem diria. Seria ela então uma fonte de inspiração assim tão arrebatadora? O que exatamente transmitia tanta inspiração, a presença física, a voz ou a própria paixão dela pela vida? Ou tudo isso não passaria de mero feitiço, como gostam de difamar os integrantes de seitas reacionárias, tipo MBL e Brasil Paralelo? Sim, nos últimos anos de vida, o fuxico que circulava no vilarejo, sobretudo entre as mulheres, dava conta de que ela era uma víbora, uma feiticeira – ‘a Feiticeira de Hainberg’.

De resto, o livro de Peters – um volume de apenas 271 páginas e que a gente devora em um final de semana – pode ser também uma ótima sugestão de presente, sobretudo para aquele seu amigo de pescoço queimado que trata as mulheres como ‘objeto de cama e mesa’; isso quando não as vê como ‘víboras traiçoeiras’ ou coisas ainda pior.

*

NOTA

[1] Assim que digitei ‘russa’, uma dúvida tomou conta da minha cabeça: Qual seria a opinião da saudosa Elke ‘Maravilha’ Grünupp (1945-2016) a respeito da sua conterrânea? (Elke teria nascido em território alemão, mas se considerava russa de nascença.)

* * *

12 julho 2024

213 meses no ar

F. Ponce de León

Nesta sexta-feira, 12/7, o Poesia Contra a Guerra está a completar 17 anos e nove meses no ar.

Desde o balanço anterior – ‘212 meses no ar’ – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Carlos Heitor Cony, Epiteto, George Hoggart Toulmin, John Blundell e John H. Goldthorpe. Além de material de autores que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes artistas: Eugène Isabey, Fernand Cormon e Louis Nicolas Cabat.

10 julho 2024

Rituais, xamãs e as origens da religião

Felipe A. P. L. Costa [*].

Uma chave importante para entender a evolução do comportamento humano e a história da humanidade é a questão da morte [1]. A maneira como nós lidamos com a morte e com os mortos é mais um caso de herança transespecífica (ver o item 3 deste capítulo), lembrando que linhagens anteriores à nossa já promoviam cerimônias de sepultamento.

Há bons motivos para associar a autoconsciência com a realização de rituais que evoquem os mortos. Afinal, o desaparecimento definitivo de indivíduos que até ontem estavam a ombrear conosco é um grande golpe. Do tipo que gera questionamentos intrigantes [2] – e.g., para onde vamos após a morte?; reencontrarei parentes e amigos mortos algum dia?; afinal, a morte é o fim de tudo?

Os assombros, as dúvidas e as ansiedades que geram e alimentam perguntas desse tipo costumam deixar marcas profundas e duradouras em cada um de nós.

[Para ler o artigo completo, clique aqui.]

07 julho 2024

Uma distância espantosa

Leon Tolstói

Da criança de cinco anos até mim, é apenas um passo. Mas do bebê recém-nascido até a criança de cinco anos, a distância é espantosa.

Fonte: Becker, E. s/d [1973]. A negação da morte. RJ, Record.

06 julho 2024

Pessoas educadas, pessoas livres

Epiteto

Não devemos acreditar nos muitos que dizem que só as pessoas livres devem ser educadas, deveríamos antes acreditar nos filósofos que dizem que apenas as pessoas educadas são livres.

Fonte: Sagan, C. 1998 [1996]. O mundo assombrado pelos demônios. SP, Companhia das Letras. Um dos expoentes do estoicismo, o filósofo grego Epiteto ou Epicteto (50-138) viveu nos séculos I e II dC.

04 julho 2024

Zona biográfica

Paulo Teixeira

Agora que o mundo deslizou como uma bola
das mãos de deus e cruza a noite vazia
dos espaços sabemos que a morte nos espera
disposta como uma refeição à nossa mesa.
Rendemos à sorte de cada minuto as nossas
vidas e corremos de monte em monte como
correria uma canção levada pelo vento.

A janela do comboio desenha, alisada
pelo gelo e o fogo, as ermas paisagens conhecidas
(ao longe, vê, a cinza e o sangue novo do crepúsculo).
Alma, era este o mundo, a imagem que retenho,
ao inspirar, nos meus brônquios. Quando o ar
se evadir da minha boca sei que perdi tudo,
é outro o mundo e sou eu, crê-me, a sua testemunha.

Nada nos resta senão lembrar as coisas tocadas
e suprimidas nesse mapa de ausência compassiva:
Praga, Hamburgo, Leipzig, Viena, essa obscura
zona biográfica onde largamos o passado
e perdemos a pauta dos horários futuros.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1991.

02 julho 2024

O capitalismo (infelizmente) é uma ficção

Felipe A. P. L. Costa [*]

A semana começou agitada e hoje eu tive uma grande lição de economia política: devo dizer que amo o capitalismo, pena que as corporações o odeiem tanto [1].

Penso e pratico a livre iniciativa desde menino. Uma das minhas primeiras iniciativas como empreendedor foi por volta de 1970, em plena ditadura. Eu tinha então uns 10-11 anos. Morávamos no Cruzeiro Novo, em Brasília [2]. O comércio local era muito incipiente e eu decidi entrar no ramo. Comprei doces e balas em uma distribuidora da Campineira [3], que ficava na W-3 Sul, e fui revender no Cruzeiro.

Lembro bem do meu raciocínio inicial. Naquela época, três balas eram vendidas por algo como 10 centavos. Fiz as contas e percebi que poderia ter lucro oferecendo quatro balas, com a vantagem adicional de poder atrair mais consumidores [4]. E foi o que eu fiz. Não deu para ficar rico, como ficaram ricos os irmãos metralha das Americanas, mas a brincadeira foi adiante.

Os gigantes do mundo corporativo fazem exatamente o oposto. Veja o comportamento das big techs (e.g., Amazon, Apple, Facebook, Google e Microsoft): compram ou esmagam a concorrência [5]. As corporações agem contra a livre iniciativa, pois elas simplesmente não admitem concorrência. No fim das contas, claro, quem paga o pato é o consumidor: hoje, em um universo econômico cada vez mais dominado por monopólios, os meus clientes de outrora não conseguiriam comprar mais do que uma bala por 10 centavos, ou talvez nem isso.

*

NOTAS.

[*] Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os quatro livros anteriores do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir os quatro volumes ou algum volume específico ou para mais informações, faça contato pelo endereço felipeaplcosta@gmail.com. Para conhecer artigos ou obter amostras dos livros, ver aqui.

[1] Três exemplos de como as empresas odeiam a livre iniciativa e a concorrência. (i) Parasitas prosperam debaixo das asas do estado, até mesmo em situação de tragédias (ver aqui); (ii) O mundo dos negócios é a verdadeira origem de toda a corrupção. Corruptos graúdos, no entanto, raramente são importunados. Criam fundações, aliciam jornalistas, iludem o público e, por fim, quando vaza alguma coisa, contratam um exército de advogados. Em alguns países, essa gente até amealha para si empresas de interesse público (ver aqui); e (iii) A privatização de empresas estatais, como foi o caso recente da empresa de abastecimento de água do estado de São Paulo, quase que invariavelmente envolve falcatruas gordas e sinistras (ver aqui).

[2] Cruzeiro Novo é um bairro residencial com prédios de até quatro andares (sem elevador), enquanto o Cruzeiro Velho, ao lado, é (ou ao menos era) composto apenas de casas. Quando morei lá, ainda não havia comércio estabelecido no Cruzeiro Novo. O comércio era móvel: caminhões com mercadorias (legumes, frutas, doces etc.), que iam e vinham, permanecendo estacionados por algum tempo em certos lugares.

[3] Quando fui morar em Campinas, em 1980, tive a satisfação de conhecer a fábrica da Campineira.

[4] Como se vê, a ideia de que o consumidor toma decisões racionais, visando minimizar gastos e maximizar ganhos, é um pressuposto da economia clássica acessível às crianças. (Para um ponto de vista alternativo, ver aqui.)

[5] A rigor, as corporações fazem algo ainda pior: drenam para si os recursos do estado. Sem a intervenção direta dos estados nacionais, por exemplo, inúmeras empresas mundo afora teriam ido à falência durante o auge da pandemia de Covid-19. Como um modo de esconder toda essa sangria e ludibriar o público, as empresas e seus bajuladores (incluindo aí a imprensa) difundem a crença de que o estado está inchado e é gastador. Muita gente de boa-fé acredita nessa lorota. Então, quando os ideólogos ou os marqueteiros da ‘economia de mercado’ assopram o apito, essa gente aponta o dedo para quem mais sofre com os horrores da economia sem concorrência: os desempregados e os pobres em geral.

* * *

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