Adaptações, penduricalhos, bricolagem
Evoluir é mudar e evoluir de modo adaptativo é mudar de acordo com as exigências que vigem em determinado lugar.
Para que um item seja apropriadamente rotulado de adaptativo, duas condições devem ser atendidas: (1) ele precisa ser hereditário (i.e., ter alguma base genética); e (2) seus portadores devem ter um desempenho superior ao de indivíduos desprovidos dele.
O segundo critério implica dizer que os indivíduos não adaptados falham ou são destruídos mais facilmente que os adaptados. E as falhas, vale notar, dependem do contexto: interceptar menos luz, correr menos ou demorar mais a acordar, de sorte que algum componente da aptidão é rebaixado em relação à média populacional.
Investigar o papel adaptativo de um item significa desvendar o modo como este afeta a aptidão de seus portadores. Visto que a aptidão não é um parâmetro de valor absoluto, o trabalho de investigação é necessariamente comparativo, exigindo o exame simultâneo dos portadores de estados alternativos de um mesmo item.
Vejamos um exemplo.
As folhas (e outras partes do corpo) da berinjela (Solanum melongena) são cobertas por um indumento piloso. Ocorre que – vamos aqui imaginar – o grau de pilosidade varia, de tal modo que as plantas que integram uma mesma população podem ser separadas em classes fenotípicas: algumas plantas produzem folhas em estados extremos (folhas glabras ou densamente pilosas), embora a maioria produza folhas com um grau intermediário de pilosidade.
Diante dessa variação, caberia a pergunta: qual é o papel do indumento na vida das berinjelas? É ou não é um traço adaptativo?
Em busca de respostas, devemos ir atrás de algumas evidências (diretas ou indiretas). O ideal seria medir e comparar um parâmetro que seja a manifestação do sucesso reprodutivo, como o número de descendentes viáveis deixados por diferentes classes fenotípicas [1]. Tal não sendo possível, como muitas vezes não o é, caberia então investigar o comportamento de algum parâmetro que, de algum modo significativo, reflita a aptidão. No caso das berinjelas, as alternativas poderiam ser a taxa de crescimento ou o número de frutos produzidos por cada planta.
As comparações devem ocorrer em um contexto ecológico realista e explorando situações contrastantes – e.g., plantas crescendo no sol e na sombra, com ou sem insetos fitófagos. O contraste visa isolar o papel do indumento foliar, identificando o fator ambiental que estaria se comportando como agente seletivo. Por exemplo, se a pilosidade é uma adaptação contra os fitófagos – e.g., servindo como uma barreira mecânica –, as diferenças na aptidão de plantas de diferentes classes fenotípicas devem ser mais evidentes na presença dos insetos do que na ausência deles.
A hipótese de que o indumento funciona como defesa ganharia força caso os resultados obtidos com as plantas crescendo no sol e na sombra apontassem em uma mesma direção – e.g., na presença dos fitófagos, e a despeito de as plantas estarem no sol ou na sombra, a taxa de crescimento ou a produção de frutos é significativamente maior entre as berinjelas pilosas.
Mas a explicação pode ser outra. O indumento poderia ser uma proteção contra os rigores do clima (e.g., insolação), pouco ou nada tendo a ver com os insetos. Neste caso, os resultados do experimento deveriam estar invertidos: seriam observadas diferenças na aptidão de plantas crescendo no sol e na sombra, a despeito de elas estarem ou não sendo atacadas pelos fitófagos.
O exemplo é apenas para mostrar como é possível investigar o papel adaptativo de um item. Ressaltando que, como desdobramento dessa primeira investigação, nós poderíamos (1) fazer a mesma pergunta diante de outras estruturas da berinjela (e.g., acúleos, pelos glandulares e flores roxas – tudo isso seria adaptativo?); ou (2) investigar o papel do indumento piloso em outras plantas [2].
O oportunismo das adaptações
Itens fenotípicos que hoje são tidos como adaptativos já foram penduricalhos. Significa dizer que itens desprovidos de função ou até ligeiramente prejudiciais podem se tornar úteis. Há dois caminhos conhecidos para isso: (1) sob novas circunstâncias, um item disfuncional pode se revelar útil; ou (2) a presença de um novo item melhora o desempenho de algum item preexistente [3].
A função de um item também é maleável e pode mudar.
As penas das aves e a produção de leite pelos mamíferos são dois exemplos – aquelas não surgiram como uma adaptação ao voo nem esta, como uma adaptação para nutrir os filhotes [4].
Para começo de conversa, as penas – em sua versão primordial – apareceram antes das aves. O fóssil emplumado mais antigo que se conhece tem ao menos 150 milhões de anos, e ainda não era o que chamaríamos hoje de uma ave. As aves só surgiriam dezenas de milhões de anos depois. Há controvérsias a respeito do papel inicial dessas estruturas, mas os estudiosos concordam que, em seus primórdios, elas nada tinham a ver com o voo. Em compensação, poucos duvidam que, em algum momento subsequente, a evolução das penas passou a ser moldada pela função que elas assumiram na capacidade de voo dos seus portadores.
O segundo caso é semelhante. Para começar, a lactação surgiu antes dos mamíferos, provavelmente em alguma linhagem de ancestrais ovíparos e endotérmicos que já exibiam algum tipo de cuidado parental. Há quem argumente, mais especificamente, que a produção de leite teria surgido ainda entre os répteis sinapsídeos (de onde saíram os terapsídeos, linhagem ancestral dos mamíferos), há uns 300 milhões de anos. (Os primeiros mamíferos apareceriam 100 milhões de anos depois!) Em seus primórdios, o leite seria uma secreção hidratante, com a qual as fêmeas ajustavam o teor de umidade dos ovos no ninho.
A lição aqui é uma só: se um traço fenotípico qualquer adquire um papel adaptativo, a sua evolução subsequente passa a ser determinada por aquele papel [5]. Mantido o seu valor adaptativo, sua história prosseguirá na mesma toada – seja na linhagem original onde surgiu, seja em alguma linhagem derivada que o herdou. Todavia, se o item é cooptado para uma nova função, esta, a partir daí, passará a balizar o seu futuro.
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Notas
Extraído e adaptado do livro O que é darwinismo (2019). (A versão impressa contém referências bibliográficas.) Para informações adicionais sobre a obra, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos e livros do autor, ver aqui.
[1] A aptidão – ou, mais precisamente, a aptidão realizada – é medida em termos de sucesso reprodutivo.
[2] As duas linhas de investigação são exploradas pelos cientistas.
[3] O fenótipo é uma bricolagem de traços, como foi dito antes. Traços (e genes) individuais podem ser discriminados, desde que o efeito deles sobre a aptidão se destaque. O modo como o genótipo codifica o fenótipo já teria sido mais frouxo, tendo sido ajustado no curso da evolução.
[4] O ponto de vista atual é que as aves são répteis emplumados.
[5] Discute-se a distinção adaptação v. exaptação. Itens hereditários podem ser investigados em termos funcionais ou históricos. Conforme ilustram Krebs & Davies, em Introdução à ecologia comportamental (Atheneu, 1996, p. 4; adaptado):
Niko Tinbergen [...] enfatizou que havia muitas maneiras diferentes de responder à questão ‘Por quê?’ em biologia. [...] Por exemplo, se perguntarmos por que os estorninhos cantam na primavera, nós poderíamos responder da seguinte maneira: 1. Em termos de valor de sobrevivência ou função. Os estorninhos cantam para atrair parceiros para o acasalamento. 2. Em termos de causalidade. Porque o aumento no comprimento do dia desencadeia mudanças nos níveis hormonais, ou pela maneira [como] o ar flui através da siringe e provoca vibrações na membrana. Estas são respostas sobre os fatores externos e internos que levam os estorninhos a [cantar]. 3. Em termos de desenvolvimento. Os estorninhos cantam porque eles aprenderam os cantos de seus pais e vizinhos. 4. Em termos de história evolutiva. Esta resposta seria sobre como o canto evoluiu nos estorninhos a partir de seus ancestrais. [As aves viventes] mais primitivas emitem sons muito simples, portanto é razoável supor que o canto complexo dos estorninhos e de outras [aves canoras] tenha evoluído a partir de chamados ancestrais mais simples.
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