Petróleo, picanha, cigarro ou cinema: O que de fato está a levar todos nós para o inferno?
1.
Soube ontem, 7/8, da morte do diretor de cinema estadunidense William [David] Friedkin (1935-2023). Dono de uma trajetória cinematográfica respeitável, ele dirigiu ao menos duas dezenas de filmes, incluindo Operação França (1971), premiadíssimo, e O Exorcista (1973), talvez um dos maiores sucessos de bilheteria da história do cinema estadunidense.
Inspirado em um livro homônimo de autoria de William Peter Blatty (1928-2017), que foi também o autor do roteiro, ‘O Exorcista’ é um filme e tanto. (Muito, muito acima da média dos filmes do gênero.) Tem lampejos de obra-prima.
2.
Ouvi falar do filme pouco depois do lançamento. Eu era um moleque e morava em Brasília. Em 1974, já morando em Juiz de Fora, li a sátira que apareceu na revista Mad. Mais ou menos na mesma época, fui apresentado ao álbum ‘Tubular Bells’, de Mike Oldfield (nascido em 1953) [1].
A música de Oldfield, a bem da verdade, aparece no filme de modo quase incidental. Assim de cabeça, eu me lembro de apenas uma cena (belíssima!) temperada pela música – Duas freiras estão a andar na calçada com seus hábitos esvoaçantes; a personagem de Ellen Burstyn (nascida em 1932), que está indo a pé para casa, passa em frente ao portão de um convento; curiosa, vê, para e tenta ouvir o que o personagem de Jason Miller (1939-2001) está a dizer a um colega (a cena pode ver vista aqui).
3.
Gosto de cinema, embora eu dificilmente assista a certos tipos de filmes (horror, terror, super-heróis etc.). O que ajuda a explicar por que eu só fui assistir ‘O Exorcista’ na primeira década deste século. (Tenho o DVD com a versão restaurada pelo diretor – ‘A versão que você nunca viu’, de 2000 – e já a revisitei algumas vezes.)
O elenco é primoroso – além de Burstyn e Miller, mencionados antes, lá estão Max von Sydow (1929-2020) e Lee J. Cobb (1911-1976), entre outros. Linda Blair (nascida em 1959), cuja carreira nunca saiu do chão, não chega a atrapalhar.
Paralelamente, ouso dizer ainda que o impacto e o sucesso do álbum ‘Tubular Bells’ aprisionaram a carreira de Oldfield em uma caixinha da qual ele jamais conseguiu escapulir. (O fenômeno é relativamente comum – digo: autores de obras-primas precoces tendem a incorrer nesse processo.)
4.
Outra coisa: Embora se trate de um filme de horror, a cena mais chocante de ‘O Exorcista’ nada tem a ver com efeitos especiais ou com algum tipo de pantomima. Estou a me referir aqui a uma passagem na qual a personagem de Ellen Burstyn está a conversar com um médico sobre os exames neurológicos da filha. A cena se passa no interior de um consultório médico, o que não impede o sujeito de sacar um cigarro, acendê-lo e dar as suas baforadas! (Duvido que alguém se lembre desse cigarro – ver a imagem que acompanha este artigo [2].)
5.
Pois é. Durante anos, a indústria do tabaco recrutou profissionais da área de saúde para usá-los como ‘argumentos’ em seus anúncios publicitários. O objetivo era duplamente mentiroso e, portanto, duplamente criminoso: (1) Incutir na mente do público a ideia de que o tabaco não é cancerígeno; e (2) Convencer a opinião pública de que o hábito de fumar, longe de ser prejudicial, pode ser benéfico à saúde humana (e.g., como um hábito relaxante).
Que não haja dúvidas: Para um ‘fumante profissional’, o hábito de fumar pode ocasionalmente ter algum efeito relaxante, mas ainda assim continuará a ser um hábito tremendamente prejudicial. Por quê? Basta dizer que a matéria-prima usada na fabricação de cigarros (um complexo de substâncias ao qual damos o nome de ‘tabaco’) é um material cancerígeno. E dos mais poderosos [3].
6.
Eis aí um dos maiores pesadelos – senão o maior – do mundo moderno: o uso da propaganda para manipular e controlar as massas. As grandes corporações, mais do que ninguém, sabem como conseguir o que querem. (Quando a manipulação não dá certo, a gente faz o que está sendo feito na Ucrânia ou na Palestina. Ou a gente faz o que foi feito na Coreia, no Vietnã, na Síria, no Iraque, no Irã etc.)
Como um ex-fumante (abandonei o hábito de vez em 1997), eu espero sinceramente que o desprezo que muitos de nós sentimos hoje pela indústria do tabaco (Philip Morris, Souza Cruz [atual BAT Brasil] etc.) não demore muito mais para alcançar também as corporações que estão a enfumaçar a atmosfera. Estou a pensar, em especial, nas petroleiras (Exxon, Shell, BP, Petrobras etc.) e no agronegócio (a indústria da carne, os grandes frigoríficos, os rebanhos gigantescos etc.).
7.
São essas indústrias que estão por trás da crise climática. São elas que de fato estão a levar todos nós para o inferno. Diante dessa turma, o demônio que dá chiliques no sucesso de bilheteria que foi o filme de Friedkin não passa de uma criança chata, mimada e malcriada.
*
Nota.
[1] Álbum de capa parecida é ‘Spiral’ (1977), do compositor grego Vangelis (1943-2022), mas este eu só fui descobrir na década de 1980. Lembro que, no início, eu confundia a autoria de ‘Tubular Bells’ com a de ‘Atom Heart Mother’ – achava que ambos seriam do Pink Floyd, banda a quem eu havia sido apresentado pouco antes, por conta do álbum ‘The Dark Side of The Moon’. Vale registrar que, ao contrário do que possa parecer, a música de Oldfield não foi composta para o filme de Friedkin. De resto, uma apresentação de ‘Tubular Bells’ (gravada em 1973) pode ser vista ou ouvida aqui.
[2] A cena pode ser vista aqui.
[3] Para um vídeo (com legendas) chamando a atenção para a origem do poder cancerígeno do cigarro, ver aqui.
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