Pré-história e arqueologia: 90 graus de diferença
André Leroi-Gourhan
Muito já foi dito e escrito sobre os dois caminhos da pesquisa pré-histórica, o que conduz ao conhecimento cronológico através da estratigrafia e o que se dirige no sentido da etnologia pela atualização sistemática das superfícies frequentadas pelo homem fóssil; aquele onde os cortes são lidos e aquele onde os solos são decifrados. Seria difícil estabelecer a anterioridade de um dos dois modos de compreensão do documento exumado em relação ao outro, ou mesmo fixar a data de seu aparecimento há cerca de um século, pois toda escavação, seja ela realizada para qualquer outra coisa que não as pesquisas arqueológicas, forçosamente revela um corte e diferentes aspectos horizontais segundo os terrenos que são trespassados. A exploração de minas e pedreiras permitiu adquirir essa visão fundamental bem antes do nascimento da preocupação de retirar do solo os testemunhos do passado dos homens. Num outro campo, também bastante banal há muitos milênios, a violação de sepulturas exigiu frequentemente dos seus executores (infelizmente condenados ao anonimato) conhecimento empírico sobre a organização do meio subterrâneo nas três dimensões. A caça aos tesouros das minas e às joias escondidas poderia, portanto, ser considerada como o antepassado desastroso, mas ainda bem vivo, da arqueologia moderna. A partir do século XVIII, com uma bagagem metodológica ainda pouco sofisticada, os arqueólogos, em sentido amplo, dispuseram dos dois meios necessários para compreender a totalidade do fato arqueológico: a visão vertical da estratigrafia e a visão ‘horizontal’ das superfícies sobre as quais os acontecimentos do passado tiveram lugar. Por razões as quais não seria inútil determo-nos por um instante, os pré-historiadores e os arqueólogos clássicos, desde o início do século XIX, tomaram, cada um, uma das duas partes que se ofereciam: os pré-historiadores adotando a estratigrafia sem se preocupar, salvo algumas exceções, com os aspectos horizontais, ao passo que os arqueólogos examinavam os solos das cidades e dos templos que exumavam, mas, ainda aqui, considerando, salvo algumas exceções, mais como um obstáculo que como um documento a enorme quantidade de entulhos acumulada sobre o sítio após o abandono do monumento que se propunham a descobrir. Os materiais do pré-histórico, principalmente feitos de pedras talhadas ou de ossos de animais, levaram os investigadores a procurarem modelos a partir da geologia e da paleontologia, as quais se forjavam poderosos instrumentos estratigráficos; os arqueólogos que trabalhavam com materiais mais civilizados, em sentido etimológico, tomaram naturalmente a esteira da arquitetura. Cada um aperfeiçoou seus métodos, mas, pelo menos na França, até um passado ainda recente, pré-história e arqueologia são vistas como fundamentalmente diferentes nas suas finalidades e nos seus meios. De fato, trata-se apenas de uma questão de proporções, e o arqueólogo, se deseja renovar a informação, tem tanta necessidade do socorro da zoologia e da estratigrafia quanto o pré-historiador. De maneira semelhante, este último, se nunca teve contato com monumentos consideráveis, tem mais que qualquer um necessidade de uma percepção direta do espaço habitado. Poderíamos resumir essa situação recente considerando que, tanto para um como para outro, só faltou ampliar verticalmente em noventa graus o campo de seus interesses, um para cima e o outro para baixo.
Fonte: Leroi-Gourhan, A. 1979. Os caminhos da história antes da escrita. In: J. Le Goff & P. Nora, orgs. História: novos problemas, 2ª ed. RJ, Francisco Alves.
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