30 novembro 2024

Lembranças de uma vigília

Ann Druyan

“É uma vigília de morte”, Carl me disse calmamente. “Vou morrer.” “Não”, protestei. “Você vai vencer desta vez, assim como já venceu antes, quando tudo parecia sem esperança.” Ele se virou para mim com aquele mesmo olhar que eu tinha visto inúmeras vezes nos debates e brigas de nossos vinte anos de trabalhos em conjunto e amor apaixonado. Com uma mistura de fino bom humor e ceticismo, mas, como sempre, sem nenhum vestígio de autopiedade, disse ironicamente: “Bem, vamos ver quem tem razão desta vez”. [...]

Ao contrário das fantasias dos fundamentalistas, não houve conversão no leito de morte, nenhum refúgio de última hora numa visão consoladora do céu ou de uma vida após a morte. Para Carl, o que mais importava era a verdade, e não apenas aquilo que poderia fazer com que nos sentíssemos melhor. Mesmo nessa hora, quando qualquer um seria perdoado por se afastar da realidade de nossa situação, Carl foi inabalável. Quando olhamos profundamente nos olhos um do outro, foi com a convicção partilhada de que a nossa maravilhosa vida em conjunto estava terminando para sempre.

Fonte: Sagan, C. 1998 [1997]. Bilhões e bilhões. SP, Companhia das Letras.

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