16 dezembro 2006

Matando o tempo

Paul K. Feyerabend

4.

Em março de 1938, a Áustria tornou-se parte da Alemanha. Para algumas pessoas – uma pequena minoria –, isto era o fim da vida civilizada. Para outras, significava a libertação da tirania de um totalitarismo católico que governara a Áustria durantes anos. Outras ainda saudaram a unificação com o Grande Irmão e o aumento de poder que isto implicava. “Veja nossos aviões”, exclamavam elas quando a força aérea alemã voava sobre Viena. Havia rumores de progresso, de fim de estagnação, de grandes oportunidades. (...)


5.

Uma ambulância levou-me ao hospital de campanha. Fui despido e posto numa mesa de operação. Minhas pernas estavam em perfeita ordem – nem um arranhão nelas. “Foi uma bala”, disseram os médicos e mostraram-me onde ela havia entrado; um minúsculo buraco do lado direito, na região lombar. “Você está paralisado”, prosseguiram, “temos que abri-lo para ver se há outras lesões”. (...)


Recuperei-me logo mas fiquei paralítico da cintura para baixo. Não fiquei muito preocupado. Cheguei mesmo a ficar alarmado quando um dos meus dedos do pé começou a mover-se; “agora não, por favor”, eu disse; “não dá para esperar até o fim da guerra?” Não me incomodava ser um aleijado – estava contente, conversava com meus vizinhos de leito, lia romances, poemas, ensaios de todos os tipos. Schopenhauer foi um golpe; sua descrição das pessoas que se entopem inadvertidamente de leituras me servia sob medida. (...)


12.

(...)

Pouco a pouco fui me familiarizando com os “intelectuais”. Trata-se de uma comunidade muito especial. Escrevem de uma forma especial, têm sentimentos especiais e parecem se ver como os únicos representantes legítimos da raça humana, o que na prática significa de outros intelectuais. Eles não são cientistas, mas podem fazer panegíricos do progresso científico. Tampouco são filósofos – mas têm agentes infiltrados naquele negócio. Thomas Nagel é um deles; [Richard] Rorty, outro; mesmo [John] Searle se revela um deles, embora careça dos modos elegantes do verdadeiro intelectual. Esta comunidade passou nesse ponto a demonstrar um certo interesse por mim, o que significa que me alçou às suas alturas, me esquadrinhou rapidamente e me deixou cair de novo. Fez-me parecer mais importante do que jamais pensei ser; enumerou minhas deficiências e me pôs e novo em meu lugar original. Eles realmente me confundiram.

(...)


14.

(...)
Hoje creio que o amor e a amizade desempenham um papel importantíssimo e que sem eles mesmo as mais nobres realizações e os mais fundamentais princípios permanecem pálidos, vazios e perigosos. E ao falar de amor não me refiro a um compromisso abstrato tal como um “amor de verdade” ou um “amor da humanidade” que, tomados em si mesmos, têm freqüentemente estimulado estreiteza mental e crueldade. Tampouco me refiro aos fogos de artifício emocionais que se autoconsomem rapidamente. Não posso dizer verdadeiramente o que pretendo, pois isto circunscreveria e delimitaria um fenômeno que é uma mistura constantemente em mutação de solicitude e iluminação. O amor tira as pessoas de suas “individualidades” limitadas, expande horizontes e muda tudo que está em seu caminho. Todavia, não há mérito neste tipo de amor, ele não está sujeito nem ao intelecto nem à vontade; ele é o resultado de uma constelação afortunada de circunstâncias. É um dom, não uma conquista.
(...)


Fonte: Feyerabend, P. K. 1996. Matando o tempo: uma autobiografia. SP, Editora da Unesp.


1 Comentários:

Blogger Thiago Nascimento disse...

Cara, fiquei contente com seu blog. Coisa difícil de se ver pela net posts como os seus. A começar por este mais recente com partes do livro do filósofo da ciência Paul Feyerabend. Vale a pena colocar alguma coisa do clássico "Contra o método" dele também. Você trabalha com o quê? Ou o que estuda?
Descobri o blog porque fui atrás de alguma informação sobre a versão musicada de uma parte do "poema sujo". Daí descobri, por aqui, que está em um disco do Milton. Aliás, parabéns também pelo cuidado com as fontes. Em outro post deu a dica até em que ano foi gravada a "Casamiento de negros" da folclorista chilena Violeta Parra.
Muito bom cara.
Quando publicar no meu blog a parte do "poema sujo" musicado o agradecimento pra você é certo. Dê um pulo por lá.
Abraço.

17/12/06 02:08  

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