14 dezembro 2006

Guerra

Cecília Meireles

Tanto é o sangue

que os rios desistem de seu ritmo,

e o oceano delira

e rejeita as espumas vermelhas.


Tanto é o sangue

que até a lua se levanta horrível,

e erra nos lugares serenos,

sonâmbula de auréolas rubras,

com o fogo do inferno em suas madeixas.


Tanta é a morte

que nem os rostos se conhecem, lado a lado,

e os pedaços de corpo estão por ali como tábuas sem uso.


Oh, os dedos com alianças perdidos na lama...

Os olhos que já não pestanejam com a poeira...

As bocas de recados perdidos...

O coração dado aos vermes, dentro dos densos uniformes...


Tanta é a morte

que só as almas formariam colunas,

as almas desprendidas... – e alcançariam as estrelas.


E as máquinas de entranhas abertas,

e os cadáveres ainda armados,

e a terra com suas flores ardendo,

e os rios espavoridos como tigres, com suas máculas,

e este mar desvairado de incêndios e náufragos,

e a lua alucinada de seu testemunho,

e nós e vós, imunes,

chorando, apenas, sobre fotografias,

– tudo é um natural armar e desarmar de andaimes

entre tempos vagarosos,

sonhando arquiteturas.


Fonte:
Meireles, C. 1993. Poesia completa: volume único. RJ, Nova Aguilar. Poema originalmente publicado em 1945.


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