23 junho 2007

Elegia em forma de epístola

Albano Martins

A circunstância de sermos homem e mulher
presos por uma aliança tácita
e secreta
do sangue
é que nos prende à vida, meu amor, e nos salva.

Nascemos sem passaporte,
entre fronteiras guardadas
por sentinelas de sal e de silêncio.

O rio da história corre, estrangulado, entre as pedras,
e o cascalho, e os detritos humanos,
e a alegria suicida das coisas limpas e puras
abandonadas e soltas à vertigem da morte.

Construímos
para nossa defesa
um muro de ironia e de sarcasmo
– imponderável cortina
de humana ternura envergonhada
ou, como tu dizes, perseguida.

O silêncio é a corda
que nos prende aos mastros,
a antena vegetal por onde
a vida se insinua,
universal e atenta.

Marinheiros duma pátria
ancorada no tempo,
bebemos o sal dos minutos que passam
e adormecemos, hirtos, de costas para o mar.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1967. Após o título, ostenta a inscrição "Para a Kay".

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