Felicidade, infelicidade
Marguerite Yourcenar
É tarde. O estacionamento embaixo está quase vazio. As luzes são raras; e a torre Eiffel em miniatura ao fundo, equivalente no sentido oposto das “japonarias” do século 19 na Europa, tem apenas uma pontinha vermelha no topo.
Neste quarto banal, sem ligação com o passado e o futuro (onde por isso somos mais nós mesmos), no meio de um dia ou de uma noite qualquer, esse milagre que bruscamente se realiza, essa graça que por vezes desce: não um instante de felicidade, porque a felicidade não se conta em instantes, mas a súbita consciência de que a felicidade nos habita. Os objetos que compõem a vida regular de repente numa outra ordem voltam para nós sua face ensolarada. Enlevo do espírito e dos sentidos (Baudelaire não se enganou), levitação em que a alma flutua como sobre uma nuvem de ouro. Assim, no avião, as nuvens medonhas sob as quais a terra sufoca transformam-se a nossos pés em cintilantes geleiras brancas e azuis. Pura felicidade que em outros momentos poderia ser igualmente pura infelicidade. Bastaria que os mesmos elementos voltassem para nós sua face sombria. Nos dois casos, há plenitude, mas a da felicidade é solar.
A torre Eiffel autêntica e seu símile em Tóquio não passam de um cenário sob o qual o caos subsiste. Mas a felicidade, se sobrevém, dá por breve tempo um sentido às coisas: pelo menos uma parcela se sente liberta, salva. Na infelicidade, tanto quanto é possível, a coragem faz as vezes do sol.
Fonte: Yourcenar, M. 1992. A volta da prisão. RJ, Nova Fronteira.
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