A falsa medida do homem
Stephen Jay Gould
Os cidadãos da República, aconselhava Sócrates, deveriam ser educados e depois classificados, de acordo com o seu mérito, em três classes: governantes, auxiliares e artesãos. Uma sociedade estável exige que essa divisão seja respeitada e que os cidadãos aceitem a condição social que lhes é conferida. Mas como é possível assegurar essa aceitação? Sócrates, incapaz de elaborar um argumento lógico, forja um mito. Com um certo constrangimento, ele diz a Glauco:
Falarei, embora realmente não saiba como te olhar diretamente nos olhos, ou com que palavras expressar a audaz ficção... Deve-se dizer a eles [os cidadãos] que a sua juventude foi um sonho, e que a educação e o treinamento que de nós receberam foi apenas uma aparência; na realidade, durante todo aquele tempo, eles estavam se formando e nutrindo no seio da terra...
Glauco, surpreso, exclama: “Tinhas boa razão para te envergonhares da mentira que ías contar.” “É verdade”, responde Sócrates, “mas ainda há mais; só te contei a metade.”
Cidadãos, dir-lhes-emos em nossa história, sois todos irmãos, mas Deus vos deu formas diferentes. Alguns de vós possuís a capacidade de comando e em vossa composição entrou o ouro, e por isso sois os merecedores das maiores honras; outros foram feitos de prata para serem auxiliares; outros, finalmente, Deus os fez de latão e ferro para que fossem lavradores e artesãos; e as espécies em geral serão perpetuadas através de seus filhos... Um oráculo diz que, quando um homem de latão ou ferro recebe a custódia do Estado, este será destruído. Esta é a minha fábula; haverá alguma possibilidade de fazer com que nossos cidadãos acreditem nela?
Glauco responde: “Não na atual geração; não existe maneira de se consegui-lo; mas é possível fazer com que seus filhos creiam nela, e os filhos de seus filhos, e, depois deles, a sua descendência.”
Fonte: Gould, S. J. 1991 [1981]. A falsa medida do homem. SP, Martins Fontes.
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