Campo santo
Guerra Junqueiro
Ai ao relento, ai ao
relento, sonham cavadores!...
Sono d’arminho... colchão
de terra... lençol de flores!...
Caí dormentes,
Caí exânimes, trementes,
Pálidos silêncios do luar dorido!
Litanias fluídas do luar dorido!
Misereres brancos do luar dorido!
Bálsamos, piedades, orações dolentes
Do luar dorido!...
Ai ao relento, ai ao relento
sonham pegureiros!...
Cama tão fresca!...
cobertor branco, de jasmineiros...
Caí maviosas,
Caí sonâmbulas, piedosas,
Côncavas tristezas do luar magoado!
Ressonâncias d’órgão do luar magoado!
Extrema-unções profundas do luar magoado!
Síncopes, oblívios, quietações chorosas
Do luar magoado!...
Ai ao relento, ai ao
relento sonha a boieirinha!...
Cama de violetas!... que
lhe fez a Virgem, sua madrinha...
Caí radiantes,
Angelizantes,
Esfolhados lírios do luar divino!
Musselina argêntea do luar divino!
Hálitos de leite do luar divino!
Pérolas, opalas, beijos e diamantes
Do luar divino!...
Ai ao relento, ai ao
relento as bisavós dormindo!...
Cama de rosas, sobrecéu
d’astros!... que sonho lindo!...
Caí
cantando,
Caí mas brando, muito brando,
Místicas nevadas do luar de prata!
Linho da candura do luar de prata!
Ângelus da ermida do luar de prata!
Êxtases boiando, sagrações ondeando
No luar de prata!...
Dormi, dormi!... que
belas camas!... ai, que bons lençóis!...
Na travesseira, que bem
que cheira! cantam rouxinóis!...
Dorme de costas, cavador,
ao luar, ao luar de neve!...
Ai, como a terra era
pesada, e se fez leve, leve!...
Dorme, pastor, ao luar de
junho, dorme sem cuidado!...
Que anda a Senhora dos Montes-Ermos
a guardar-te o gado...
Durmam velhinhas! durmam
crianças! durmam donzelas!
Quando acordarem já têm
os anjos à espera d’elas...
Há-de acordar tudo lá nos céus doirados...
Há-de haver banquetes, há-de haver noivados...
Põe a mesa a Virgem para os pobrezinhos...
Ai, que lindos fructos!... ai, que ricos vinhos!...
Vinhos d’um vinhedo, fructos d’um pomar,
Que no céu os anjos regam com luar...
Ordenhando ovelhas andam serafins,
Cantarinhos d’oiro, leite de jasmins.
Outros nas arribas crestam as colmeias,
Grandes favos brancos como luas cheias.
Ai, que bom almoço, feito n’um vergel,
Pomos cor de aurora, leite, vinho e mel!...
Para as avozinhas tem lá Deus bastantes
Fusos d’esmeraldas, rocas de diamantes...
Como vós, ó moças, lá no céu casais,
Elas darão teias para os enxovais...
Já no sete-estrelo dançam nos terreiros,
Tamboris e violas, frautas e pandeiros...
Já lá vejo os noivos, com S. João à espera,
N’uma ermida branca revestida d’hera...
Ai, dormi, donzelas, ai dormi ao luar,
Que no céu com anjos vós ireis casar...
Ai, dormi, crianças! que no azul divino
Brincareis alegres com o Deus-menino...
Partirá convosco, porque é vosso irmão,
A laranja, – o mundo, que lá tem na mão...
Dormi, dormi, sem dor, sem
penas...
Dormi, dormi!...
E em vossos leitos florescentes,
De rosas brancas e açucenas,
Caiam dormentes,
Caiam exânimes, trementes,
Graças do baptismo do luar alvíssimo!
Beijos do noivado do luar puríssimo!
Lágrimas da morte do luar tristíssimo!
Cânticos d’exéquias, orações dolentes
Do luar santissimo!...
Fonte (versos 49 e 50):
Cunha, C. 1976. Gramática do português contemporâneo, 6ª edição. BH, Editora Bernardo Álvares. Poema publicado em
livro em 1892.
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