25 março 2020

Corpos, gentes, epidemias e... dívidas



1. Os coelhos de Fibonacci.

Em 1202, o comerciante e matemático italiano Fibonacci [1], publicou uma obra que se tornaria um marco na história da matemática, o Liber abaci (Livro do ábaco ou L. do cálculo).

Uma das passagens mais famosas do livro – a edição que chegou até nós é a 2ª, de 1228 – faz alusão a um problema biológico (livremente adaptado) [2]:

Um casal de coelhos é colocado dentro de um cercado. Eles levam um mês para atingir a maturidade sexual. A partir de então, o casal gera um casal de descendentes ao final de cada mês. Começando com um único casal, quantos casais estarão presentes no cercado após alguns meses – digamos um, dois ou três anos?

Observe que a história começa com um único casal. E que o casal inicial – bem como todos os casais futuros – se reproduz de modo indefinido e ininterrupto.

Pois bem.

Ao final do primeiro mês, o jovem casal atinge a maturidade. Mais um mês e eles dão origem à primeira prole. São agora dois casais. Transcorrido o terceiro mês, o casal inicial gera um segundo casal de filhotes, enquanto a primeira prole atinge a maturidade. Ao final do quarto mês, o casal inicial gera sua terceira prole; a segunda prole atinge a maturidade e a primeira prole gera seu primeiro casal de filhotes (netos do primeiro casal). Temos agora cinco casais: os pais, os filhos (três casais) e os netos.

E a multiplicação assim prossegue. Indefinida e ininterruptamente – ao menos em teoria.

Considerando o total de casais (adultos e jovens) presentes no início de cada mês, teríamos a seguinte sequência [3]:

1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, 89, 144, 233...

Trata-se de uma sequência numérica. Cujos termos podem ser representados do seguinte modo:

a1 = 1, a2 = 1, a3 = 2, a4 = 3, a5 = 5, a6 = 8, a7 = 13...,

sendo an o número de casais presentes no início do n-ésimo mês.

Olhe com calma e observe que há uma lógica por trás da sequência – cada termo, a partir do segundo, é a soma dos dois termos imediatamente anteriores. Essa relação é capturada pela fórmula

an + 1 = an + an – 1,

onde n = 2, 3, 4, 5 etc. Sequências numéricas que obedecem à fórmula acima são referidas como sequências de Fibonacci [4].

*

FIGURA. A figura que acompanha este artigo ilustra o que se passa com os coelhos de Fibonacci. Começando com um único e jovem casal, obtemos a sequência a1 = 1, a2 = 1, a3 = 2, a4 = 3, a5 = 5, a6 = 8..., sendo an o número de casais presentes no início do n-ésimo mês. (Cada esfera representa um casal; os números à esquerda indicam a geração correspondente, a começar pelo casal inicial – geração 0.)

*

Fibonacci talvez tenha sido o primeiro ocidental a modelar o crescimento numérico de populações. Ou, em termos ainda mais amplos, o primeiro ocidental a modelar um fenômeno biológico universal: a propensão a perdurar por meio de algum processo multiplicativo.

Neste artigo (e em artigos futuros), nós examinaremos três situações que envolvem multiplicação: o crescimento do corpo de organismos multicelulares, o crescimento numérico de populações e a disseminação de epidemias. Vamos examinar também um exemplo não biológico, o crescimento das dívidas.

2. O crescimento do corpo.

Assim como todo organismo vivo descende de um organismo preexistente, toda e qualquer célula deriva de alguma célula preexistente.

A divisão celular – processo multiplicativo por meio do qual uma célula-mãe dá origem a duas ou mais células-filhas – atende a dois propósitos: crescimento e reprodução.

Entre os eucariotos (como é o nosso caso), as células podem se dividir por mitose ou por meiose [5].

Na mitose, a célula-mãe duplica o material genético (cromossomos, armazenados no núcleo) e, em seguida, o reparte equitativamente entre as duas células-filhas. Estas herdam cópias inalteradas do genoma parental – exceto quando ocorre alguma mutação (leia-se: alteração na sequência de bases da molécula de ADN) [6]. Uma repartição equilibrada do conteúdo celular é de vital importância, notadamente no caso dos cromossomos [7].

Na meiose, a célula-mãe também inicia o processo duplicando o seu material genético. Desta vez, no entanto, o material duplicado será repartido entre quatro células-filhas, cada uma herdando metade dos cromossomos parentais. Durante a meiose, os cromossomos homólogos se aproximam, formam pares e trocam pedaços entre si. Temos assim um processo de recombinação genética, em decorrência do qual cada uma das quatro células-filhas herdará uma combinação exclusiva dos genomas parentais [8].

2.1. Ciclos de vida.

O ciclo de vida dos organismos multicelulares abriga diferentes etapas de desenvolvimento. Entre os animais, dois padrões de desenvolvimento costumam ser reconhecidos, o indireto e o direto.

No desenvolvimento indireto, o ciclo começa com a formação do zigoto (ou célula-ovo), resultante da união de dois gametas (espermatozoide e óvulo, no caso dos animais). O zigoto se desenvolve em embrião (tipicamente dentro de um ovo); o qual dará origem a uma larva (cuja aparência e hábitos são muito diferentes dos do adulto); a larva cresce, passa por uma metamorfose e então se desenvolve em adulto. Este último estágio se caracteriza pela maturidade reprodutiva.

No desenvolvimento direto, a nova geração também começa com a formação do zigoto e o desenvolvimento de um embrião. Aqui, no entanto, não há um estágio larval. Os embriões dão origem a indivíduos jovens que gradativamente se convertem em adultos. Jovens e adultos costumam ser parecidos – descontando, claro, a diferença de tamanho. É o caso dos seres humanos.

Os ciclos de vida que se caracterizam por mudanças notáveis na aparência e nos hábitos de vida dos organismos são comumente referidos como ciclos de vida complexos. Os artrópodes (insetos, crustáceos, aracnídeos etc.) constituem um grupo zoológico conhecido pela variedade de ciclos de vida complexos que exibem.

No que segue, vamos examinar alguns aspectos do ciclo de vida de um inseto. Além de exemplificar ideias e conceitos referidos antes, a maior preocupação aqui é de natureza metodológica.

2.2. O crescimento larval.

Mais de 60% de todas as espécies conhecidas são insetos. E mais de 90% das espécies de insetos passam por uma metamorfose completa durante suas vidas. Esses insetos são chamados de holometábolos. Os exemplos incluem justamente as ordens mais especiosas da classe – Coleoptera (besouros), Lepidoptera (mariposas e mariposas), Hymenoptera (vespas, abelhas, formigas) e Diptera (moscas, mosquitos, pernilongos).

Vejamos o caso de borboletas e mariposas. O ciclo de vida desses insetos envolve quatro estágios: ovo, larva (lagarta), pupa e adulto. Em muitos casos, o estágio adulto demora apenas uns poucos dias, enquanto o estágio larval chega a ocupar mais de ¾ do tempo de vida.

O estágio larval se notabiliza por ser um estágio ativo, durante o qual o inseto se alimenta e cresce rapidamente. Ocorre que o corpo das larvas é revestido por uma cutícula dura e impermeável. Qualquer aumento mais expressivo no tamanho exige que ela ‘troque de pele’ – o exoesqueleto anterior é perdido e, em seu lugar, é secretado um novo.

Perder a cutícula é um processo habitualmente referido como muda. A muda tem início com a separação da cutícula velha das células epidérmicas subjacentes (apólise) e termina quando os restos da cutícula velha são perdidos (ecdise). Neste artigo, nós usaremos o termo estádio em alusão ao intervalo transcorrido entre duas mudas bem como à aparência do inseto durante esse intervalo.

O estágio larval das borboletas abriga normalmente cinco estádios, do primeiro (L1) ao quinto (L5). Cada estádio é sucedido por uma muda subsequente (e.g., de L1 para L2, de L2 para L3 e assim por diante), totalizando quatro mudas larvais e uma muda pupal (i.e., de L5 para pupa).

Durante o estágio larval, não costumam ocorrer mudanças significativas na forma do corpo, cada estádio sendo mais ou menos parecido com o anterior. Todavia, ocorrem mudanças notáveis no tamanho. Assim é que, entre a eclosão do ovo e o fim do quinto estádio, o peso do corpo chega a aumentar mais de mil vezes [9].

O peso do corpo de uma larva pode ser estimado por meio de medidas lineares, como a largura da cápsula cefálica ou o comprimento do corpo. Esta última, em particular, pode ser usada para avaliar a biomassa de insetos em grandes amostragens ou, mais especificamente, para estimar a taxa de crescimento das larvas, sobretudo quando não é possível ou desejável pesá-las diretamente. Este seria o caso, por exemplo, de quem está a estudar a ecologia dos imaturos em situações de campo.

O xis da questão aqui é: como investigar o crescimento sem ter de pesar as larvas?

2.3. Um estudo de caso.

Para início de conversa, é bom notar que o peso de um animal é uma grandeza tridimensional – afinal, três são as dimensões por onde a biomassa se distribui pelo corpo (comprimento x largura x altura). Mas nem sempre é necessário obter as três medidas para estimar com segurança o peso do corpo de um animal. Em muitas situações, uma já é o bastante.

No caso das lagartas, por exemplo, o peso pode ser expresso por meio de equações que têm o seguinte aspecto:

W = a x Lb,   (eq. 2.1)

onde W representa o peso, L é o comprimento, e a e b são constantes.

Pois bem.

Considere o caso de Hypothyris ninonia, uma borboleta encontrada em várias regiões brasileiras, inclusive no sudeste de Minas Gerais. Um estudo publicado em 2002 [6] revelou que a relação entre o comprimento e o peso do corpo das lagartas de Hypothyris pode ser expressa por meio da equação

W = 0,039 x L2,687.   (eq. 2.2)

onde W é o peso (em mg) e L, o comprimento (mm).

A equação (2.2) nos permite usar medidas do comprimento do corpo para estimar o peso das larvas – sem a necessidade de pesá-las diretamente! (E com uma boa margem de precisão e segurança.)

Em termos metodológicos, é uma descoberta auspiciosa. Sobretudo para quem trabalha no campo. De posse de equações assim, nós podemos investigar a dinâmica do crescimento em condições naturais – sem a necessidade de levar as larvas para o laboratório ou a balança para o campo!

*

Notas

[*] Alguns trechos deste artigo foram extraídos e adaptados do livro O que é darwinismo (2019). Para detalhes e informações sobre o livro, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato com o autor pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros livros e artigos, ver aqui.

[1] Leonardo Pisano (c. 1170 – c. 1242), também conhecido como Leonardo de Pisa, Leonardo Fibonacci ou simplesmente Fibonacci (= Filho de Bonacci, alusão ao pai dele, Guglielmo dei Bonacci).

[2] O livro é dividido em 15 capítulos; o caso dos coelhos está no capítulo 12. Em 2002, o Liber abaci ganhou uma primeira edição impressa em inglês. Trata-se da tradução de uma compilação publicada na Itália, em 1857. Não sei dizer se a obra já teve uma versão em português, mas suspeito que não.

[3] Ao final do primeiro ano, serão 233 casais; ao final do segundo, 75.025; e, ao final do terceiro, 24.157.817.

[4] Um exame apressado pode levar o leitor a concluir que o processo representado na fórmula é aditivo. Mas não é. Há embutida ali uma multiplicação.

Observe: a apresentação referida no texto,

an + 1 = an + an – 1,

equivale a (multiplicação em negrito)

an + 1 = (an – an – 1) + 2 x (an – 1).

A conclusão é simples: padrões de crescimento que podem ser descritos como uma sequência de Fibonacci são processos multiplicativos.

[5] Em eucariotos unicelulares (e.g., protozoários e algas), a propagação se dá por mitose (reprodução assexuada) ou meiose (r. sexuada). Em procariotos, a divisão é uma fissão binária: cada célula cresce até dobrar de tamanho, quando então se forma um septo que a divide em duas.

[6] Para detalhes, ver Costa, FAPL. 2019. O que é darwinismo. Viçosa, Edição do autor.

[7] Cromossomos são como as peças de um quebra-cabeça; se faltam ou sobram peças, o conjunto pode falhar. Assim é que um a mais ou um a menos já resulta nas chamadas síndromes cromossômicas.

[8] Células humanas têm 23 pares de cromossomos homólogos; em cada par, um cromossomo é de origem paterna e o outro, de origem materna.

[9] Cabe aqui registrar o papel de controle desempenhado pelo comprimento do corpo. O início das mudas larvais e, sobretudo, a passagem para o estágio de pupa dependem do comprimento da larva. Uma larva L5 que esteja abaixo do comprimento mínimo (cujo valor exato, claro, varia com a espécie) não se converte em pupa. A lagarta precisa crescer mais e, para tanto, entra em um (ou mais) estádio larval extra (L6 etc.). Atingido o comprimento mínimo, ela então consegue empupar.

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