21 março 2020

Malthus e a pandemia: colocando alguns pingos nos is


A propósito do artigo “Malthus e Vallance vão aplaudir do túmulo [sic] o Premier britânico”, de Rogério Maestri, publicado no Jornal GGN, em 19/3.

Não sei se entendi direito o que o autor está a criticar e a defender. Em todo caso, devo dizer que estranhei o que penso ter entendido e, por conta disso, deixo aqui algumas ponderações.

Em primeiro lugar, cabe registrar que Patrick [John Thompson] Vallance (nascido em 1960) está vivo. Ele é médico e conselheiro científico do primeiro-ministro britânico Boris Johnson.

Mas vamos ao xis da questão. O que de fato me chamou a atenção foram os comentários meio destrambelhados. Tanto aqueles dirigidos ao clérigo e estudioso inglês Thomas Robert Malthus (1766-1834) como os que foram feitos a respeito da postura do governo britânico diante da pandemia em curso [1]. Neste último caso, eu diria mesmo que os comentários são perigosamente imprecisos. Vejamos.

Pesadelo malthusiano

É fato que a primeira edição do livro Um ensaio sobre o princípio da população (1798) foi publicada anonimamente [2]. Mas a prática não era exatamente incomum, sobretudo quando o conteúdo pudesse ser visto como herético [3].

Como o leitor talvez já saiba, a análise demográfica ali contida foi uma inspiração decisiva para Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913), os inventores da moderna teoria evolutiva [4].

Segundo Malthus, a população de um país tende a crescer mais rapidamente do que a base de recursos da qual ela se alimenta. Tal descompasso implicaria em fome, miséria e conflitos, e ajudaria a explicar a sucessão de surtos que caracterizam a história humana: períodos de crescimento populacional são sucedidos por episódios durante os quais algum surto de mortalidade elevada ceifa a vida de uma parcela expressiva da população. A duração e a intensidade dessas crises seriam proporcionais ao descompasso entre o tamanho da população e a base de recursos.

Embora não concordassem com todos os pontos de vista contidos na obra, Darwin e Wallace perceberam que a análise malthusiana poderia ser estendida e aplicada ao mundo natural [5]. Afinal, a multiplicação é um fenômeno universal.

Ocorre também que nenhuma multiplicação prossegue indefinidamente. Cedo ou tarde, o crescimento de qualquer população (animal, vegetal etc.) deve ser inibido por forças restritivas. O aparente equilíbrio da natureza – a estabilidade numérica das populações – ocultaria assim um entrechoque entre duas grandes forças: a produção de muitos novos indivíduos e a destruição de quase todos eles. O que varia são as fontes de destruição (e.g., escassez alimentar, inimigos naturais etc.).

E não seria mais ou menos esse o tipo de pesadelo que estamos a viver [6]?

O vírus que parou o mundo

O novo coronavírus (SARS-CoV-2) que emergiu em Wuhan, no final de 2019, rapidamente se espalhou por todas as províncias da China. Em 1/3/2020, o vírus já podia ser encontrado em outros 58 países. Há muitas incertezas envolvendo a virulência e a transmissibilidade do patógeno, e isso atrapalha os esforços de combate à pandemia [7].

Na luta contra o novo coronavírus, alguns países logo adotaram as medidas sugeridas pela OMS (testar suspeitos e reconstituir os contatos de indivíduos infectados), combinadas com medidas sociais de natureza restritiva (e.g., fechar espaços públicos, cancelar eventos e manter suspeitos em quarentena). Tudo isso visa promover o distanciamento social. (O que, é bom que se diga, não é nada fácil em se tratando de seres humanos. Afinal, nós somos animais essencialmente sociais.)

Inicialmente, o Reino Unido decidiu adotar uma postura diferente. Por um lado, o governo não tentaria rastrear os contatos dos indivíduos suspeitos. E os testes só seriam feitos em quem estivesse hospitalizado. O governo evitaria também adotar medidas sociais de natureza restritiva. A preocupação maior seria proteger os mais vulneráveis. As faixas etárias mais jovens, a respeito das quais os dados chineses sugerem que são também as faixas mais resistentes, estariam mais expostas. Mas tenderiam naturalmente a desenvolver imunidade contra o vírus, o que supostamente poderia representar um freio na disseminação doméstica da epidemia. Trata-se de um fenômeno coletivo comumente referido pelo rótulo de imunização de rebanho (“herd immunity”, em inglês) [8].

Segundo Vallance, para que o processo funcione e dê certo, cerca de 60% da população britânica precisariam contrair a Covid-19. A opinião pública britânica não gostou da brincadeira [9]. O primeiro-ministro foi alvo de chacotas, mas também de críticas duras, a maioria absolutamente pertinente. Basta dizer que a imunização de rebanho só costuma ser levada em conta quando se promovem campanhas prévias de vacinação, como as que são rotineiramente feitas no Brasil [10].

O governo se rendeu às críticas e voltou atrás. E já anunciou que o Reino Unido passará a fazer testes em massa e a rastrear os contatos dos suspeitos. Assim como adotará as medidas sociais restritivas que outros países já adotaram. Como em outros países, o objetivo agora seria reduzir ao máximo o contato social, ao menos até que a epidemia dê mostras claras de que está a perder força. (O que, aliás, já estaria a ocorrer na China.)

*

Notas

[*] Para detalhes e informações sobre o livro O que é darwinismo (2019), inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato com o autor pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos e livros, ver aqui.

[1] Entre os nomes defenestrados por Maestri em seu artigo, constam outros dois autores igualmente importantes, David Ricardo (1772-1823) e Francis Galton (1822-1911).

[2] Uma 2ª edição, bem modificada e já com o nome do autor, apareceria em 1803. Outras quatro edições seriam publicadas, em 1806, 1807, 1817 e 1826.

[3] Outro exemplo. Em outubro de 1844, Londres foi sacudida por uma grande novidade: o livro Vestiges of the natural history of creation (J Churchill, 1844). Foi um sucesso e tanto, edição atrás de edição. O autor era o geólogo e editor escocês Robert Chambers (1802-1871); sua identidade, no entanto, só seria revelada postumamente, na 12ª edição (1884). Para comentários adicionais, ver Costa (2019).

[4] Sobre a vida e obra dos dois naturalistas britânicos, ver Costa (2019).

[5] Para um panorama geral a respeito da diversidade de pontos de vista sobre o crescimento populacional ao longo da história, ver Hardin (1967).

[6] Sem contar, claro, com um agravante político: quantas empresas, governos e governantes estão mais preocupados com os mercados do que com as sociedades humanas? Não me alinho entre os que acham que a Terra está superpovoada, assim como não me alinho entre os que acham que todo e qualquer problema de origem antrópica tem solução.

[7] Informações e análises novas estão a aparecer todos os dias. Ver, por exemplo, Li et al. (2020).

[8] Quando a maioria dos integrantes de uma população (digamos, 95%) é imune a um patógeno, mesmo aqueles poucos que não o são ainda assim estão protegidos. O que se passa é que em uma população assim os patógenos têm pouca ou nenhuma chance de prosperar.

[9] Ver matérias ‘The U.K.’s coronavirus ‘herd immunity’ debacle’, de Ed Yong, publicada no The Atlantic, em 16/3; e ‘After the big pub panic, Boris Johnson puts his money where his mouth is’, de Michael Deacon, publicada no The Telegraph, em 17/3.

[10] Cabe ressaltar que é a imunização de rebanho que está a proteger os filhos de pais que decidem não vacinar seus filhos. O problema é que se o número de pais a abraçar essa medida – digamos, excêntrica – superar certo percentual, a proteção coletiva desaparece e os patógenos voltam a prosperar na população.

*

Referências citadas

+ Costa, FAPL. 2019. O que é darwinismo. Viçosa, Edição do autor.
+ Hardin, G. 1967 [1964]. População, evolução & controle da natalidade. SP, Nacional & Edusp.
+ Li, R & mais 6. 2020. Substantial undocumented infection facilitates the rapid dissemination of novel coronavirus (SARS-CoV2). Science 10.1126.

***

1 Comentários:

Blogger Carlos Fernando S. Andrade disse...

Professor Ponce de León ... Ótimo artigo. Não tinha lido o original de Rogério Maestri e não me interesso mais em ler. Comento sobre sua nota [10]. Pais que não vacinam os filhos (algumas vacinas, claro) não necessariamente o fazem por excentricidade e sim por estratégia pensada. Matriculei meus 3 filhos em escolas nos EUA com um atestado brasileiro de que 'estavam imunizados' para caxumba, sarampo, rubéola etc. Não tomaram a vacina mas o contato com colegas que tomaram costuma imunizar. Além da proteção do rebanho americano imunizado, claro.

12/4/20 12:35  

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