Reparos a uma matéria da Folha: A tendência no Brasil não está pior do que já esteve na Itália, Espanha e EUA
Resumo. Além de reiterar a advertência que fiz anteriormente, argumentando que uma matéria publicada na Folha de S. Paulo (e reproduzida em outros lugares) carecia de reparos, este artigo dimensiona o tamanho do problema. A situação da pandemia no país é grave e exige medidas sérias e urgentes, algo que parece definitivamente fora dos planos do Palácio do Planalto. Todavia, ao contrário do que alardeou a matéria da FSP, a expansão da covid-19 em terras brasileiras não está pior (leia-se mais acelerada) do que já esteve (ou ainda está) na Itália, na Espanha e nos Estados Unidos.
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Em 29/4, a Folha de S. Paulo publicou uma matéria intitulada ‘Com aceleração da Covid-19, Brasil tem tendência pior que Itália, Espanha e EUA’, de Diana Yukari, Fábio Takahashi & Guilherme Garcia.
O assunto, claro, é dos mais pertinentes e relevantes. O texto da reportagem, no entanto, abriga erros e mal-entendidos graves. A começar pelo título. Os termos ‘aceleração’ e ‘tendência pior’, por exemplo, não correspondem às estatísticas (nem antes nem agora) e, portanto, não deveriam ter sido usados.
1. Onde e por que a FSP errou?
Como eu havia alertado em artigo anterior (aqui), a matéria carece de ajustes e correções. Não sou assinante da FSP, mas visito o sítio do jornal todos os dias e não notei a publicação de qualquer tipo de reparo. (É bem possível que os reparos tenham sido publicados em local fora do meu alcance. No entanto, mantenho contato com alguns jornalistas – incluindo colegas que trabalham na Folha – e nenhum deles me chamou a atenção para tal correção.)
São dois erros principais. O mais óbvio deles está na conclusão. O menos óbvio está na metodologia.
Em primeiro lugar, cabe registrar o seguinte: o ritmo da pandemia em terras brasileiras não está (ou ainda não está) mais acelerado do que já esteve nos três países citados. Em segundo lugar, se estivesse mais acelerado, o modo de detectar isso não seria o modo sugerido pela reportagem [1].
É um erro, por exemplo, querer estabelecer paralelos com base tão somente na cronologia de um surto epidêmico – e.g., dividir o surto em semanas, pressupondo que as estatísticas de uma dada semana (5ª, 10ª, 20ª etc.) serão equivalentes em diferentes lugares (países). Pois foi o que fizeram os repórteres da Folha. Em vez de promover comparações com base em analogias cronológicas, mais acertado seria olhar para a velocidade de disseminação da doença em diferentes lugares. Por exemplo, quanto tempo as estatísticas levaram para saltar de 1 mil para 10 mil registros ou de 10 mil para 100 mil?
Pois bem. Com base nas estatísticas dos nove países que hoje integram o Grupo dos 100 mil (ver adiante), apresento a seguir um modo de como tal comparação poderia ser levada a termo.
2. Efetivos populacionais e a pandemia.
No domingo (3/5), o Brasil passou a integrar o Grupo dos 100 mil – são hoje nove países, cada um deles a contabilizar mais de 100 mil casos da covid-19 [2].
É uma notícia desagradável e preocupante. Mas não é bem uma surpresa. Por vários motivos. Um deles é o fato óbvio de que o país é um dos 10 mais populosos do mundo [3].
Tal ponderação não implica dizer que a parte de cima da lista dos países afetados pela pandemia não nos revele algumas surpresas. Pois revela.
Em primeiro lugar, é notável a ausência de alguns dos países mais populosos do mundo. A Índia, por exemplo, o segundo país mais populoso, está em 15º da lista. Paquistão (5º mais populoso) é o 24º. Indonésia (4º) é o 36º e Bangladesh (8º), o 37º. A Nigéria (7º) está ainda mais atrás. A China, ainda o país mais populoso e o primeiro epicentro da pandemia, parece ter controlado o surto da doença dentro do seu território.
A parte de cima da lista também chama a atenção pela presença de países que abrigam populações bem menores que a do Brasil (ainda que em todos eles a densidade demográfica seja bem superior). É o caso da Espanha (46,7 milhões de habitantes) e do trio dos 60, integrado aqui por Itália (60,6 milhões), França (65,1) e Reino Unido (67,5).
3. Grupo dos 100 mil.
Decidi então comparar a situação do Brasil com a dos demais oito países que hoje integram o Grupo dos 100 mil. Para cada país, eu calculei uma taxa de crescimento diário no número de novos casos. A rigor, calculei dois valores para cada país, levando em conta dois intervalos sucessivos: (a) o valor da taxa durante o intervalo em que o país saltou de 1 mil para 10 mil casos (β10); e (b) o valor da taxa durante o intervalo em que o país saltou de 10 mil para 100 mil casos (β100).
Estes dois valores foram definidos como β100 = ln [Y(100) / Y(10)] / t(100), e β10 = ln [Y(10) / Y(1)] / t(10), onde Y(100) é o número de casos que foi divulgado no dia em que o país superou a marca de 100 mil casos; Y(10) é o número divulgado no dia em que o país superou 10 mil casos; Y(1) é o número divulgado na véspera do dia em que o país superou 1 mil casos; t(100) é o intervalo de tempo (dias) que o país levou para saltar de 10 mil para 100 mil casos; t(10) é o intervalo que o país levou para saltar de 1 mil para 10 mil casos; e ln indica logaritmo natural.
4. Construindo um gráfico.
Quando os valores de β assim obtidos são colocados em um gráfico (ver a figura que acompanha este artigo), podemos constatar algumas coisas.
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FIGURA. A figura que acompanha este artigo ilustra uma comparação entre nove países na taxa de crescimento no número de casos da covid-19 (β, em percentual; eixo horizontal superior). A comparação envolveu dois intervalos sucessivos: (a) o valor da taxa durante o intervalo em que cada país saltou de 1 mil para 10 mil casos, β10 (beta-10); e (b) o valor da taxa durante o intervalo em que cada país saltou de 10 mil para 100 mil casos, β100 (beta-100). Note que a França é o único país com algum valor inferior aos valores do Brasil. (Os países estão listados de acordo com o número total de casos.)
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Duas constatações nos interessam aqui. Em primeiro lugar, é possível notar que há uma queda acentuada e generalizada no valor de β. Assim é que, com exceção dos Estados Unidos, o valor de β100 é mais ou menos a metade do de β10. (Não vamos aqui entrar em detalhes, mas esta queda já indica que o ritmo de disseminação da pandemia arrefeceu em todos os países, mesmo nos EUA.)
Em segundo lugar, é possível perceber que o menor de todos os valores de β10 foi o do Brasil. O país teve também o segundo menor valor de β100, ficando atrás apenas da França. (No geral, entre 1 mil e 100 mil casos, França e Brasil tiveram taxas de crescimento diário bem próximas: 11,2% e 11,3%, respectivamente.)
5. Coda.
Os resultados mostram que, ao menos por enquanto, a disseminação da pandemia entre nós não está pior (leia-se mais acelerada) do que já esteve nos três países (Itália, Espanha e Estados Unidos) mencionados na matéria da FSP.
É o que nos mostra a figura que acompanha este artigo. Em números, por exemplo, bastaria dizer o seguinte: enquanto o Brasil saltou de 10 mil para 100 mil casos a uma taxa de crescimento diário de 8%, a Itália fez o mesmo a uma taxa de 12%. O ritmo de crescimento na Espanha foi de 15,6% e nos Estados Unidos, de 28,8% [4].
A covid-19 é uma doença contagiosa: indivíduos infectados transmitem a doença para outros indivíduos da população que não estão infectados. No momento, a principal arma que temos na luta contra a disseminação da doença é a adoção de medidas efetivas de distanciamento social. Por quê? Porque o distanciamento social reduz a frequência e a intensidade dos encontros interpessoais.
Com o distanciamento, a probabilidade de contágio cai dramaticamente. Caindo a probabilidade de contágio, cai o valor de β, o que por sua vez resulta no tal achatamento da curva [5]. E é isso o que estamos a fazer: estamos achatando a curva.
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Notas.
[*] Para detalhes e informações sobre o livro mais recente do autor, O que é darwinismo (2019), inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros livros e artigos, ver aqui.
[1] Se eu entendi bem – não sou assinante da FSP e não tive acesso ao texto completo –, o pressuposto por trás da reportagem seria o seguinte: as epidemias varrem os países durante um intervalo de tempo mais ou menos fixo. É um pressuposto equivocado, mas suspeito que a sua origem não esteja propriamente na redação do jornal. Suspeito que o equívoco tenha surgido em razão de material produzido pelo Ministério da Saúde (Boletim Epidemiológico, n. 7, p. 8 – para a lista completa, ver aqui), no qual se discorre a respeito das etapas de uma curva epidêmica. A figura ali reproduzida, por sua vez, foi extraída e adaptada (a fonte é apropriadamente citada) de uma imagem contida em material produzido pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), uma conceituada e atualmente desnutrida repartição do Departamento de Saúde do governo federal dos Estados Unidos. Vejamos agora como essa cascata de eventos pode ter resultado em uma matéria problemática. Em primeiro lugar, cabe observar que o material produzido pelo CDC estava a tratar de surtos de gripe. Trata-se de uma virose, como nós todos sabemos, mas gripe e covid-19 definitivamente são doenças diferentes. E o mais importante: até onde é sabido, o que estamos a viver hoje seria o primeiro surto em escala mundial (pandemia) da covid-19. A gripe está conosco há muito tempo e os seus surtos são tão recorrentes que já fazem parte até do calendário! A lição que de fato nós poderíamos extrair de um exame dos surtos anuais de gripe seria tão somente o comportamento geral dessas curvas, não os seus detalhes. (Para considerações adicionais, ver o artigo anterior – aqui.)
[2] Eis a lista dos nove países mais afetados (entre parênteses, o número de casos): Estados Unidos (1,202 milhão), Espanha (219,3 mil), Itália (213 mil), Reino Unido (196,2 mil), França (170,6 mil), Alemanha (166,7 mil), Rússia (155,4 mil), Turquia (129,5 mil) e Brasil (114,7 mil). O próximo a entrar no clube será o Irã (99,97 mil) e posso adiantar que o país irá desbancar a França da primeira posição; o Brasil então passará a ter a terceira taxa mais lenta entre os países do Grupo dos 100 mil. As estatísticas acima foram extraídas do painel Mapping 2019-nCov (Johns Hopkins University, EUA), em 5/5.
[3] Eis a lista dos 10 países mais populosos do mundo (entre parênteses, o número de habitantes): China (1,434 bilhão), Índia (1,366 bilhão), Estados Unidos (329,1 milhões), Indonésia (270,6), Paquistão (216,6), Brasil (211), Nigéria (201), Bangladesh (163), Rússia (145,9) e México (127,6). Estatísticas extraídas do sítio das Nações Unidas (ver aqui).
[4] Detalhes metodológicos: o Brasil saltou de 10.278 para 101.147 casos em 29 dias; a Itália saltou de 10.149 para 101.739 em 20 dias; a Espanha saltou de 11.826 para 104.118 em 15 dias; e os EUA saltaram de 13.898 para 105.217 em 8 dias.
[5] Frear a pandemia implica em achatar a curva – para detalhes, ver o artigo anterior (aqui). Mas é bom ter em mente o seguinte: achatar a curva não significa que as estatísticas diárias irão despencar de um dia para o outro. Não é isso. Em termos absolutos, nossas estatísticas diárias vão continuar elevadas, infelizmente, embora possam seguir caindo, em termos relativos. (E acompanhar a variação diária no valor de β pode ser um modo efetivo de monitorar o curso da epidemia.) Isso tem a ver com o fato de que as nossas somas (e.g., total de casos) já estão em patamares elevados. Veja: se o total de casos já está em 100 mil, um aumento de 2% de um dia para o outro implicaria em 2 mil novos casos. Em compensação, quando o total estava em 10 mil, um aumento de 5% (500 novos casos) não nos parecia tão preocupante. Parte do problema com o qual os técnicos se defrontam tem a ver com isto: a luta contra as epidemias é mais efetiva quando as medidas de combate são tomadas precocemente. Todavia, como os números iniciais são baixos, muita gente não consegue perceber o que se passa. E aí o apoio popular costuma ser igualmente baixo. Quando o problema se torna óbvio e o apoio popular aumenta, o impacto das medidas já não é o mesmo de antes. Em maior ou menor grau, este tem sido o drama vivido por quase todos os países durante a pandemia (ainda em curso) da covid-19.
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