10 novembro 2020

O cântaro quebrado

Eduardo Guerra Carneiro

Foi então que vi luzir no firmamento
as claraboias da minha salvação. Era negra
a Lua e as sete estrelas marcavam a estrada,
nítido caminho por onde iria navegar 
até ao zero do infinito. Pedi a um Deus
distante as provas evidentes e aí estavam,
na aparição vinda do eclipse.

Falavas tu de um cântaro quebrado
mas o que pretendias era outra taça
onde guardar o tesouro dos segredos.
Misturavas no barro estrelas e vulcões
e sobrava-te apenas o lixo que escorria
pelas fendas desse cântaro tão usado.
Agora sim: aí tens almofariz.

Não sabes, talvez, usar esta ânfora
encontrada, preciosa, que tens tu de encher
de novidades, sorrisos até, esquecendo
as lágrimas. Não me fales de cantarização!
Teu cântaro rachado nada vale!
Olha-me de frente o sete-estrelo e parte
ao encontro das novas galáxias.

Não era nas veredas medonhas dos subúrbios
que podias encontrar as trovas. Bastava,
vê lá tu!, olhar mais céu e céu
e em noite de eclipse saberes que a Terra
era essa sombra a enegrecer a Lua.
Depois sentias um abraço, outro e outro,
e respiravas agora nessa paz.

Vai então, contador de histórias, e constrói
a nave dos milagres. Procura tudo e todos
nos mínimos sentidos, no lírio das bermas,
na nuvem secreta, nas formigas, no bosque
que se forma ao virar da esquina.
É no real que encontras o sentido último
do mais profundo e mágico mundo novo.

Navegador do infinito: és meu príncipe.
E no princípio de tudo saberás que o fim
também está. Um caldeirão imenso agora
tens para a mistura e não o cântaro.
quebrado que teimavas usar. Desculpas
de poeta, eu sei!, mas o barro mal tratado
desfazia-se em negrume nos teus dedos.

Deita para trás os vícios da linguagem
e apega-te, lusíada, aos versos.
Mas de outra forma, pois tens
o mote, vindo lá do fim de tudo.
que sabes ser princípio. No caos
entraste para lhe descobrires a harmonia.
Ele deu-te as leis – procura usá-las.

Não temas que te acusem do pior
se a verdade é esta e a queres doar
doa a quem doer. Insiste, abusa,
faz, refaz e torna a fazer.
A divindade das palavras está
na solene repetição. Foi então
que vi luzir no firmamento as claraboias...

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1993.

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