06 março 2023

A má preguiça venceu de novo: Ministério da Saúde suspende a divulgação diária das estatísticas

Felipe A. P. L. Costa [*].

Em memória de Sueli [Correa] Costa (1943-2023).

A inércia é uma poderosa ‘força universal’ [1]. Mas é também um destino. Veja: A julgar pelo que nos contam certos modelos cosmológicos, o zero absoluto, a desagregação das partículas e – acrescentaria eu – a indiferença infinita seriam o destino último do mundo. No âmbito do comportamento individual e da cultura humana, a inércia muitas vezes se manifesta como preguiça (individual) ou como imobilismo (coletivo).

1. DOIS TIPOS DE PREGUIÇA.

Não é difícil identificar as múltiplas manifestações da inércia no âmbito dos negócios humanos. Algumas delas são bastante folclóricas, como a famosa frase que os candidatos costumam ouvir ao final de uma entrevista de emprego: “Não nos procure, nós o procuraremos”.

Muitas outras, no entanto, são profundamente perniciosas, sobretudo em contextos coercitivos – “É melhor você não contar nada disso para a sua mãe”, diz o tio molestador para a sobrinha.

Por vários motivos (a respeito dos quais nós não vamos nos estender aqui), a preguiça não costuma ser bem-vista pela maioria da população. Não estranha, portanto, que esse tipo de conduta não seja incentivado publicamente, embora seja o sonho privado de quase todos os integrantes das elites dirigentes (econômicas, políticas etc.) de qualquer país do mundo.

O correto seria a gente separar o joio do trigo, digo a má e a boa preguiça [2], e centrar fogo apenas e tão somente na nocividade da primeira.

2. A MÁ PREGUIÇA SEGUE A GOVERNAR O PAÍS?

Todo este preâmbulo, ou todo este nariz de cera, como dizem os jornalistas, foi apenas para registrar o seguinte: A má preguiça – a mesma que imperou como nunca no país ao longo dos últimos quatro anos, tanto no governo como na imprensa – segue dando as cartas em muitos setores da sociedade brasileira.

Na última sexta-feira (3/3), por exemplo, cumprindo o que havia anunciado semanas antes, o Ministério da Saúde suspendeu a divulgação diária das estatísticas envolvendo a pandemia em terras brasileiras.

A justificativa oficial é revoltante: O ministério alega que apenas nove estados seguem a divulgar estatísticas diárias, o que tornaria a divulgação dos números um retrato bastante nebuloso (palavras minhas) da situação do país. (Que não haja dúvida: Tem governo estadual fazendo corpo mole há muito tempo, incluindo MG, DF e RJ, como eu ressaltei em inúmeros boletins anteriores.)

Cada um de nós – sejamos ou não jornalistas, sejamos ou não assessores de imprensa – tende a se contentar com as próprias mentiras que inventa. Pois para mim, a atitude do ministério é preocupante – para não dizer profundamente vergonhosa.

3. UM RECADO PARA OS LEITORES.

De resto, deixo aqui registrado o meu pedido de desculpa aos raros leitores – incluindo amigos e colegas de longa data, vizinhos de rua e, claro, gente desconhecida – que ainda acompanham os boletins semanais que sigo a publicar neste Jornal GGN, desde 2/4/2020 (o primeiro está aqui e o da semana passada, aqui).

O mais importante, claro, não é prosseguir por prosseguir com o monitoramento. O propósito final é zerar de vez as estatísticas [3]. Mas zerar de verdade.

A medida preguiçosa adotada agora pelo Ministério da Saúde – e que bem poderia ter sido adotada por qualquer um dos fulanos que antecederam a ministra atual –, não irá acelerar a resolução do problema. Seguramente, porém, terá um efeito nocivo, pois prejudica o monitoramento.

4. CODA.

Enquanto isso, nós, o povo, devemos ter em mente dois princípios: Máscaras e vacinas seguem sendo as melhores armas que nós temos para (i) manter as estatísticas em declínio; e (ii) impedir o surgimento de novidades evolutivas que venham a promover uma nova e repentina escalada dos números. (Lembrando que a vacina combate a doença, mas não impede o contágio. O que pode impedir o contágio é o uso correto de máscara facial.)

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NOTAS.

[*] Há uma campanha de comercialização envolvendo os livros do autor – ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para mais informações ou para adquirir (por via postal) os quatro volumes (ou algum volume específico), faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos e livros, ver aqui.

[1] Para uma definição formal e rigorosa de inércia, ver, e.g., Nussenzveig (2013).

[2] Sim, há uma boa preguiça, mas a esta nós comumente aplicamos o rótulo de ócio (leia-se: a livre escolha de atividades e de emprego do tempo, em oposição ao cumprimento de ocupações obrigatórias). A ciência moderna, por exemplo, é fruto do ócio criativo. Veja: Historicamente, o desenvolvimento do pensamento especulativo organizado (= ciência) teve de esperar pela abundância alimentar e, mais adiante, pelo surgimento do ócio criativo, notadamente entre integrantes de uma parcela privilegiada da população. Nas palavras de Davis (1968, p. 67; tradução livre):

“Durante muito tempo, o homem médio não dedicou mais do que uma parte bem pequena do seu tempo ou de sua reflexão à cultura e a ocupações de ócio. Estas foram promovidas por uma parcela bem pequena da humanidade, a que estava no topo da escala social, alcançado graças a proezas físicas, por arte, destreza, por habilidade ou por perseverança; havia nela um pequeno grupo composto de artistas, de músicos e de letrados que constituíam os círculos intelectuais que gravitavam em torno da elite nascida do poder. Se houve exceções a este quadro, foi, talvez, em algumas ilhas tropicais, onde as condições de vida permitiram conceber este sonho paradisíaco: pouco trabalho e muita diversão.”

[3] Reitero aqui o que escrevi em artigo anterior (aqui):

“As estatísticas da pandemia de fato seguem a cair em escala planetária, mas ainda é cedo para empurrar tudo para a gaveta do esquecimento ou para debaixo do tapete. Como uma indicação algo arbitrária para uma linha de corte, eu sugeriria o seguinte: As estatísticas devem continuar a ser divulgadas todos os dias – incluindo fins de semana, feriados etc. – até que a média semanal no número diário de mortes por Covid-19 em todo o país fique abaixo do número equivalente de mortes provocadas por outras doenças contagiosas afins (e.g., gripe). Ou até que essa média fique abaixo de 10. O número que for mais baixo.”

*

REFERÊNCIAS CITADAS.

Davis, DM. 1968 [1967]. ¿Epoca comunitaria o era del individualismo? In: Vários, La civilización del ocio. Madri, Guadarrama.

Nussenzveig, HM. 2013. Curso de física básica, v. 1: Mecânica, 5ª ed. SP, Blucher.

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