A polêmica origem de 'feito nas coxas'
Rafael Rigolon [*].
Há pouco tempo, voltei a Ouro Preto, onde pude ver ao vivo um guia de turismo explicando a origem da expressão feito nas coxas. Eu, que sempre lutei contra as pseudoetimologias, confesso que hesitei e não tive coragem de contestá-lo naquela ocasião. Os demais turistas o escutavam boquiabertos, fascinados, surpresos com tamanha ‘revelação’. Não seria eu a estragar o momento.
O guia precisava de atenção e os turistas, de boas histórias. Apesar de reprovável, compreendo perfeitamente a motivação dele em propagar a história de que os escravos moldavam as telhas em suas coxas. Como cada pessoa é de um tamanho, as coxas são diferentes e as telhas saíam irregulares. Daí as goteiras nos telhados... Por isso, para algo malfeito (feito sem capricho ou às pressas) dizemos que foi feito nas coxas. Historinha boa de ouvir. Não recrimino o guia.
Agora, quando as novas cartilhas do bom comportamento (para não dizer censura) apresentam essa pseudo-história como justificativa para que deixemos de usar a expressão, sob o risco de sermos tachados de racistas (mesmo sem saber, mesmo sem intenção, mesmo fora de contexto, mesmo discordando), aí a sensação é de revolta mesmo. Tratar desses assuntos aqui também gera uma tensão danada. Ocorre que, se não pusermos a mão no vespeiro de vez em quando, o vespeiro só irá crescer. Então, analisemos o caso.
As telhas de cerâmica eram mesmo fabricadas por escravos, mas não, as coxas deles não serviam de molde. Não precisamos ir longe no raciocínio para concluir que não seria algo produtivo fazê-las assim. De acordo com um famoso artigo do professor José La Pastina Filho, da UFPR, publicado na revista Arqueologia, em 2006, as telhas coloniais brasileiras tinham de 0,45 a 0,8 m de comprimento. Ora, usando a coxa de um homem de 1,80 m de altura como molde, só se poderia fazer telhas de 0,36 m de comprimento. A primeira conclusão que tiro é: o inventor dessa história de coxas como molde não entendia nem de telhas nem de coxas.
Ainda que fossem telhas pequenas, o escravo cujas coxas estavam a servir de molde teria de ficar algum tempo imobilizado, de modo que as peças começassem ao menos a secar, o que, no fim das contas, implicaria mais tempo parado do que manipulando a massa. Por que usar as coxas de alguém como molde, quando troncos ou até bananeiras eram abundantes e serviriam melhor a esse fim?
Uma explicação alternativa é que a falta de padrão na fabricação das telhas teria levado alguém a comentar que elas “pareciam ter sido feitas nas coxas”. Pareciam... Então, a comparação, meramente metafórica, teria crescido a ponto de dar vida à história.
Outras hipóteses foram propostas para dar alguma luz a esse mistério fraseológico. Já vi quem afirmasse que a telha poderia ter sido feita num cocho (um tronco escavado), palavra parecida com coxa.
O grande professor Cláudio Moreno, em 2007, aventou que a expressão poderia estar relacionada ao sexo intercrural (entre as coxas), uma prática sexual em que não há penetração, mais frequente no passado, quando a virgindade era mais valorizada. Justamente por ser considerado algo ‘incompleto’, ‘malfeito’, a expressão teria daí surgido.
Uma hipótese explicativa mais simples, com a qual simpatizo bastante, é a de que a expressão tenha simplesmente derivado do ato de se escrever sobre as coxas. Uma escrita à mão numa folha de papel sem um anteparo adequado por baixo resulta numa caligrafia irregular ou mais feia. Escrever em cima das coxas é um reflexo de uma ação apressada, sem as condições ou o tempo necessários, tal como a expressão sugere.
No Brasil, dizemos também feito em cima das coxas. Em Portugal, usa-se a expressão feito em cima dos joelhos com o mesmo sentido. Curiosamente, por lá, também corre uma pseudoexplicação com aquelas tais telhas desiguais, mas os escravos seriam do Império Romano.
Por aqui, temos registros antigos como, por exemplo, um de 1893, onde o doutor Joaquim de Almeida Leite Moraes (1835-1895) critica o Código Penal Brasileiro (1890), qualificando-o como “uma obra precipitada, escripta em cima dos joelhos, e ao correr da pena...” (p. 151). Parece-me mais condizente para a explicação de fazer nas coxas.
No fim das contas, sou de opinião que obras precipitadas, escritas nas coxas e ao correr da pena, são esses manuais de censura da fala baseados em afirmações sem fundamento. Amparadas pelas frágeis colunas da pseudoetimologia e do anacronismo, essa política do cerceamento e da patrulha termina se revelando um grande desserviço à necessária luta antirracista.
Ainda que fosse verdade, que os escravos do Brasil tivessem mesmo moldado as telhas em suas coxas, seria ilógico condenar uma palavra ou uma expressão apenas por sua origem. É um raciocínio feito nas coxas.
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NOTA.
[*] Artigo extraído e adaptado de 50 Pseudoetimologias Para Deixar de Compartilhar, livro que, ao lado de 100 Etimologias Para Curtir e Compartilhar, acaba de ser lançado pelo autor. Ambos já estão disponíveis para aquisição. Para adquirir os volumes ou para mais informações, faça contato pelo endereço rafael.rigolon@ufv.br. Para conhecer outros artigos do autor, visite @nomescientificos (Instagram).
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REFERÊNCIAS CITADAS.
‘O Código Penal de 1890’, por Joaquim de Almeida Leite Moraes, na Gazeta Juridica (1893); ‘Eram as telhas feitas nas coxas das escravas?’, por José La Pastina Filho, na revista Arqueologia (2006); ‘Nas coxas’, por Cláudio Moreno, no jornal Zero Hora (jan. 2007); ‘Como surgiu a expressão? ‘Fazer as coisas em cima do joelho’’, do canal Zig Zag, no YouTube (mai. 2013).
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