Herança cultural transespecífica
Felipe A. P. L. Costa [*].
Quando se encontra alguém por aqui, a gente fica feliz, pois sente que pode ajudá-la. [...] Não há gente ruim na taiga. A maioria das pessoas ruins está onde estão muitas outras pessoas. Lá elas podem roubar. Mas por aqui elas não sobreviveriam. A taiga limpa você. Este lugar faz você refletir sobre as suas ações. Limpa a sua alma.– Sergei Khlebnikov [1].
*
1. ANIMAIS DEPENDENTES DE TECNOLOGIA.
A vida moderna – para o bem ou para o mal – está assentada no uso generalizado de tecnologias. Trata-se de um universo amplo, rico e heterogêneo, no interior do qual encontramos desde as ferramentas de pedra lascada até as modernas quinquilharias descartáveis.
A históra da humanidade tem sido moldada pelo conhecimento tecnológico, tanto em escala evolutiva (~300 mil anos) como em termos civilizacionais (< 10 mil anos) [2]. Mas que não haja dúvidas: produzir tecnologia não é uma exclusividade da espécie humana. Outros animais também produzem tecnologia.
O que é próprio da nossa cultura – e talvez seja único entre os animais – é o grau de dependência que estabelecemos com os artefatos que produzimos. Como anotou Lewin (1999, p. 309): “[O]s seres humanos são os únicos animais que se tornaram dependentes dos frutos da tecnologia, incluindo os povos com os modos de subsistência mais simples” [3].
2. HERANÇA TRANSESPECÍFICA.
Diferentemente do que imaginam alguns, tecnologia não é sinônimo de novidade ou de modernidade. Basta ver as invenções que datam de tempos imemoriais. Há casos de tecnologias cujos primórdios são anteriores ao surgimento da espécie humana [4]. A confecção de roupas talvez pudesse ser lembrada. Dois bons exemplos, contudo, são o controle do fogo e a confecção de ferramentas [5].
Estabelecidas antes do surgimento do H. s. sapiens, o uso do fogo e a confecção de ferramentas são tecnologias que ilustram bem o tipo de tradição que poderia ser rotulada aqui de herança cultural transespecífica – leia-se: tradições que abrigam itens amplamente usados hoje em dia, os quais, no entanto, não foram inventados por nós, mas sim por espécies (agora já extintas) anteriores à nossa.
NOTAS.
[*] O presente artigo foi extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (no prelo). Outros trechos da obra já foram anteriormente divulgados – e.g., Livros, lentes & afins; Revolução Agrícola, a mãe de todas as revoluções; O que é cultural, afinal?; Quem quer ser um cientista?; A terceira via: Algumas notas sobre o método científico; As origens da política; Nervos, cérebros e comportamento. II. Podemos aprender com os nossos erros; e Ciência, tecnologia, negócios.
Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os quatro livros anteriores do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir os quatro volumes ou algum volume específico ou para mais informações, faça contato com o autor pelo endereço felipeaplcosta@gmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros anteriores, ver aqui.
[1] Trecho do depoimento de Sergei Khlebnikov, então guarda-florestal em uma unidade de conservação da Khakassia (Sibéria), ao documentário Agafia’s taiga life (2013), dirigido por Pavel Baydikov. (Fala original em russo; tradução a partir da legenda em inglês; ver nota 3.)
[2] A depender do contexto, o adjetivo humano é usado neste livro (1) em alusão aos humanos modernos (H. s. sapiens); ou (2) em alusão às espécies do gênero Homo. Não são raros os achados arqueológicos com idade estimada superior aos achados de fósseis de H. s. sapiens. Por exemplo, Barham et al. (2023) relatam o encontro de artefados com idade estimada em 450-500 mil anos. O material (cinco peças de madeira atribuídas ao H. helmei) foi encontrado em um tradicional sítio arqueológico às margens do Kalambo, rio que desemboca no lago Tanganica e que marca a fronteira entre o SO da Tanzânia e o NE de Zâmbia. Peças ainda mais antigas já foram encontradas no Oriente Médio (780 mil anos), mas os novos achados representam um novo marco para a arqueologia africana.
[3] Exemplo dramático e relativamente recente é o caso da família russa Lykov – pai, mãe e dois casais de filhos. Entre 1937 e 1978, a família viveu no meio do nada, sem contato com o mundo exterior. No início de 1937, por motivos políticos e religiosos, os Lykov fugiram para as montanhas Sayan, uma região remota e desabitada, no sul da Sibéria. A família contava então com quatro integrantes – os pais, Karp (1901-1988) e Akoulina (1900-1961), e os dois primeiros filhos, Savin (1927-1981) e Natalia (1934-1981). Para sobreviver longe da civilização por tanto tempo, eles tiveram de desenvolver técnicas e artefatos para caçar, pescar, arar a terra etc. Sem isso, a família teria sucumbido rapidamente. Por fim, eles fincaram raízes às margens da confluência dos rios Erinat e Abakan, a ~240 km de distância da cidade mais próxima (Abakan). Os dois filhos mais novos nasceram ali, Dmitri (1940-1981) e Agafia (nascida em 1943). Em 1978, a família foi descoberta por geólogos que estavam a fazer prospecções na região. Na época, a família morava em uma cabana de um único cômodo. Não há fotos da mãe com o grupo, pois ela havia morrido de fome, em 1961. A partir de então, os Lykov meio que se converteram em um misto de lenda e atração turística. Duas das três mortes ocorridas em 1981 foram atribuídas a problemas renais e a terceira, a uma pneumonia. Única sobrevivente, Agafia vive hoje em uma casa moderna e confortável, no mesmo sítio onde nasceu. Embora continue a realizar plenamente as tarefas do dia a dia, ela agora conta com a ajuda de gente (incluindo estrangeiros) que vai até lá para visitá-la. Ela também continua sendo uma defensora fervorosa do fundamentalismo religioso que herdou – os pais eram velhos crentes (ou abakumitas), uma dissidência da Igreja Ortodoxa Russa. O lado ruim dessa história, eu diria, é que a saga do Lykov e, em especial, o testemunho de vida dado por Agafia são presas fáceis para líderes religiosos oportunistas. Sobre os Lykov (em inglês), ver aqui (livro), aqui (artigo) e aqui (vídeo).
[4] Sobre a definição e a abrangência taxonômica do gênero Homo, eis o comentário de Cela-Conde & Ayala (2003, p. 7684; tradução livre): “Em seu Systema Naturae, Carolus Linnaeus colocou a espécie humana no gênero Homo, embora tal colocação transmitisse um significado taxonômico diferente do atual. Linnaeus distinguiu entre o Homo diurnus, com diferentes formas correspondentes aos humanos europeus, americanos, asiáticos e africanos, e o Homo nocturnus, correspondente ao orangotango. Com o passar do tempo, o gênero Homo adquiriu a conotação atualmente associada a esse táxon, que inclui apenas uma espécie vivente, o Homo sapiens, e alguns de seus parentes hominídeos próximos. Algumas formas fósseis agora incluídas em Homo receberam inicialmente diferentes identificações taxonômicas em nível de gênero, como Pithecanthropus, Sinanthropus [...], entre outros.”
[5] Sobre os primórdios da indústria lítica, ver Rogers & Semaw (2009); sobre o controle do fogo, Roebroeksa & Villa (2011); sobre roupas, Reed et al. (2004). Um quarto exemplo possível seria a realização de rituais fúnebres, envolvendo o enterro deliberado do corpo de companheiros mortos (e.g., Berger et al. 2023).
REFERÊNCIAS CITADAS.
++ Barham, L & mais 13. 2023. Evidence for the earliest structural use of wood at least 476,000 years ago. Nature 622: 107-11.
++ Berger, LR & mais 36. 2023. Evidence for deliberate burial of the dead by Homo naledi. eLife 12: RP89106.
++ Cela-Conde, C. & Ayala, FA. 2003. Genera of the human lineage. Proceedings of the National Academy of Sciences 100: 7684-9.
++ Lewin, R. 1999 [1998]. Evolução humana. SP, Atheneu.
++ Reed, DL & mais 4. 2004. Genetic analysis of lice supports direct contact between modern and archaic humans. PLoS 2(11): e340.
++ Roebroeksa, W. & Villa, P. 2011. On the earliest evidence for habitual use of fire in Europe. Proceedings of the National Academy of Sciences 108: 5209-14.
++ Rogers, MJ & Semaw, S. 2009. From nothing to something: the appearance and context of the earliest archaeological record. In: M Camps & P Chauhan, eds. Sourcebook of Paleolithic transitions, Heidelberg, Springer.
Diferentemente do que imaginam alguns, tecnologia não é sinônimo de novidade ou de modernidade. Basta ver as invenções que datam de tempos imemoriais. Há casos de tecnologias cujos primórdios são anteriores ao surgimento da espécie humana [4]. A confecção de roupas talvez pudesse ser lembrada. Dois bons exemplos, contudo, são o controle do fogo e a confecção de ferramentas [5].
Estabelecidas antes do surgimento do H. s. sapiens, o uso do fogo e a confecção de ferramentas são tecnologias que ilustram bem o tipo de tradição que poderia ser rotulada aqui de herança cultural transespecífica – leia-se: tradições que abrigam itens amplamente usados hoje em dia, os quais, no entanto, não foram inventados por nós, mas sim por espécies (agora já extintas) anteriores à nossa.
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NOTAS.
[*] O presente artigo foi extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (no prelo). Outros trechos da obra já foram anteriormente divulgados – e.g., Livros, lentes & afins; Revolução Agrícola, a mãe de todas as revoluções; O que é cultural, afinal?; Quem quer ser um cientista?; A terceira via: Algumas notas sobre o método científico; As origens da política; Nervos, cérebros e comportamento. II. Podemos aprender com os nossos erros; e Ciência, tecnologia, negócios.
Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os quatro livros anteriores do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir os quatro volumes ou algum volume específico ou para mais informações, faça contato com o autor pelo endereço felipeaplcosta@gmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros anteriores, ver aqui.
[1] Trecho do depoimento de Sergei Khlebnikov, então guarda-florestal em uma unidade de conservação da Khakassia (Sibéria), ao documentário Agafia’s taiga life (2013), dirigido por Pavel Baydikov. (Fala original em russo; tradução a partir da legenda em inglês; ver nota 3.)
[2] A depender do contexto, o adjetivo humano é usado neste livro (1) em alusão aos humanos modernos (H. s. sapiens); ou (2) em alusão às espécies do gênero Homo. Não são raros os achados arqueológicos com idade estimada superior aos achados de fósseis de H. s. sapiens. Por exemplo, Barham et al. (2023) relatam o encontro de artefados com idade estimada em 450-500 mil anos. O material (cinco peças de madeira atribuídas ao H. helmei) foi encontrado em um tradicional sítio arqueológico às margens do Kalambo, rio que desemboca no lago Tanganica e que marca a fronteira entre o SO da Tanzânia e o NE de Zâmbia. Peças ainda mais antigas já foram encontradas no Oriente Médio (780 mil anos), mas os novos achados representam um novo marco para a arqueologia africana.
[3] Exemplo dramático e relativamente recente é o caso da família russa Lykov – pai, mãe e dois casais de filhos. Entre 1937 e 1978, a família viveu no meio do nada, sem contato com o mundo exterior. No início de 1937, por motivos políticos e religiosos, os Lykov fugiram para as montanhas Sayan, uma região remota e desabitada, no sul da Sibéria. A família contava então com quatro integrantes – os pais, Karp (1901-1988) e Akoulina (1900-1961), e os dois primeiros filhos, Savin (1927-1981) e Natalia (1934-1981). Para sobreviver longe da civilização por tanto tempo, eles tiveram de desenvolver técnicas e artefatos para caçar, pescar, arar a terra etc. Sem isso, a família teria sucumbido rapidamente. Por fim, eles fincaram raízes às margens da confluência dos rios Erinat e Abakan, a ~240 km de distância da cidade mais próxima (Abakan). Os dois filhos mais novos nasceram ali, Dmitri (1940-1981) e Agafia (nascida em 1943). Em 1978, a família foi descoberta por geólogos que estavam a fazer prospecções na região. Na época, a família morava em uma cabana de um único cômodo. Não há fotos da mãe com o grupo, pois ela havia morrido de fome, em 1961. A partir de então, os Lykov meio que se converteram em um misto de lenda e atração turística. Duas das três mortes ocorridas em 1981 foram atribuídas a problemas renais e a terceira, a uma pneumonia. Única sobrevivente, Agafia vive hoje em uma casa moderna e confortável, no mesmo sítio onde nasceu. Embora continue a realizar plenamente as tarefas do dia a dia, ela agora conta com a ajuda de gente (incluindo estrangeiros) que vai até lá para visitá-la. Ela também continua sendo uma defensora fervorosa do fundamentalismo religioso que herdou – os pais eram velhos crentes (ou abakumitas), uma dissidência da Igreja Ortodoxa Russa. O lado ruim dessa história, eu diria, é que a saga do Lykov e, em especial, o testemunho de vida dado por Agafia são presas fáceis para líderes religiosos oportunistas. Sobre os Lykov (em inglês), ver aqui (livro), aqui (artigo) e aqui (vídeo).
[4] Sobre a definição e a abrangência taxonômica do gênero Homo, eis o comentário de Cela-Conde & Ayala (2003, p. 7684; tradução livre): “Em seu Systema Naturae, Carolus Linnaeus colocou a espécie humana no gênero Homo, embora tal colocação transmitisse um significado taxonômico diferente do atual. Linnaeus distinguiu entre o Homo diurnus, com diferentes formas correspondentes aos humanos europeus, americanos, asiáticos e africanos, e o Homo nocturnus, correspondente ao orangotango. Com o passar do tempo, o gênero Homo adquiriu a conotação atualmente associada a esse táxon, que inclui apenas uma espécie vivente, o Homo sapiens, e alguns de seus parentes hominídeos próximos. Algumas formas fósseis agora incluídas em Homo receberam inicialmente diferentes identificações taxonômicas em nível de gênero, como Pithecanthropus, Sinanthropus [...], entre outros.”
[5] Sobre os primórdios da indústria lítica, ver Rogers & Semaw (2009); sobre o controle do fogo, Roebroeksa & Villa (2011); sobre roupas, Reed et al. (2004). Um quarto exemplo possível seria a realização de rituais fúnebres, envolvendo o enterro deliberado do corpo de companheiros mortos (e.g., Berger et al. 2023).
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REFERÊNCIAS CITADAS.
++ Barham, L & mais 13. 2023. Evidence for the earliest structural use of wood at least 476,000 years ago. Nature 622: 107-11.
++ Berger, LR & mais 36. 2023. Evidence for deliberate burial of the dead by Homo naledi. eLife 12: RP89106.
++ Cela-Conde, C. & Ayala, FA. 2003. Genera of the human lineage. Proceedings of the National Academy of Sciences 100: 7684-9.
++ Lewin, R. 1999 [1998]. Evolução humana. SP, Atheneu.
++ Reed, DL & mais 4. 2004. Genetic analysis of lice supports direct contact between modern and archaic humans. PLoS 2(11): e340.
++ Roebroeksa, W. & Villa, P. 2011. On the earliest evidence for habitual use of fire in Europe. Proceedings of the National Academy of Sciences 108: 5209-14.
++ Rogers, MJ & Semaw, S. 2009. From nothing to something: the appearance and context of the earliest archaeological record. In: M Camps & P Chauhan, eds. Sourcebook of Paleolithic transitions, Heidelberg, Springer.
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