14 outubro 2025

Pequenino morto

Vicente de Carvalho

Tange o sino, tange, numa voz de choro,
Numa voz de choro... tão desconsolado...
No caixão dourado, como em berço de ouro,
Pequenino, levam-te dormindo... Acorda!
Olha que te levam para o mesmo lado
De onde o sino tange numa voz de choro...
   Pequenino, acorda!

Como o sono apaga o teu olhar inerte
Sob a luz da tarde tão macia e grata!
Pequenino, é pena que não possas ver-te...
Como vais bonito, de vestido novo
Todo azul celeste com debruns de prata!
Pequenino, acorda! E gostarás de ver-te
   De vestido novo.

Como aquela imagem de Jesus, tão lindo,
Que até vai levado em cima dos andores,
Sobre a fronte loura um resplendor fulgindo,
– Com a grinalda feita de botões de rosas
Trazes na cabeça um resplendor de flores...
Pequenino, acorda! E te acharás tão lindo
   Florescido em rosas!

Tange o sino, tange, numa voz de choro,
Numa voz de choro... tão desconsolado...
No caixão dourado, como em berço de ouro,
Pequenino levam-te dormindo... Acorda!
Olha que te levam para o mesmo lado
De onde o sino tange numa voz de choro...
   Pequenino, acorda!

Que caminho triste, e que viagem! Alas
De ciprestes negros a gemer no vento;
Tanta boca aberta de famintas valas
A pedir que as fartem, a esperar que as encham...
Pequenino, acorda! Recupera o alento,
Foge da cobiça dessas fundas valas
   A pedir que as encham.

Vai chegando a hora, vai chegando a hora
Em que a mãe ao seio chama o filho... A espaços,
Badalando, o sino diz adeus, e chora
Na melancolia do cair da noite;
Por aqui só cruzes com seus magros braços
Que jamais se fecham, hirtos sempre... É a hora
   Do cair da noite...

Pela Ave Maria, como procuravas
Tua mãe!... Num eco de sua voz piedosa,
Que suaves coisas que tu murmuravas,
De mãozinhas postas, a rezar com ela...
Pequenino, em casa, tua mãe saudosa
Reza a sós... É a hora quando a procuravas...
   Vai rezar com ela!

E depois... teu quarto era tão lindo! Havia
Na janela jarras onde abriam rosas;
E no meio a cama, toda alvor, macia,
De lençóis de linho no colchão de penas.
Que acordar alegre nas manhãs cheirosas!
Que dormir suave, pela noite fria,
   No colchão de penas...

Tange o sino, tange, numa voz de choro,
Numa voz de choro... tão desconsolado...
No caixão dourado, como em berço de ouro,
Pequenino, levam-te dormindo... Acorda!
Olha que te levam para o mesmo lado
De onde o sino tange numa voz de choro...
   Pequenino, acorda!

Por que estacam todos dessa cova à beira?
Que é que diz o padre numa língua estranha?
Por que assim te entregam a essa mão grosseira
Que te agarra e leva para a cova funda?
Por que assim cada homem um punhado apanha
De caliça, e espalha-a, debruçado à beira
   Dessa cova funda?

Vais ficar sozinho no caixão fechado...
Não será bastante para que te guarde?
Para que essa terra que jazia ao lado
Pouco a pouco rola, vai desmoronando?
Pequenino, acorda! – Pequenino!... É tarde!...
Sobre ti cai todo esse montão que ao lado
   Vai desmoronando...

Eis fechada a cova. Lá ficaste... A enorme
Noite sem aurora todo amortalhou-te.
Nem caminho deixam para quem lá dorme,
Para quem lá fica e que não volta nunca...
Tão sozinho sempre por tamanha noite!...
Pequenino, dorme! Pequenino, dorme...
   Nem acordes nunca!

Fonte (primeira estrofe): Horta, A. B. 2007. Criadores de mantras. Brasília, Thesaurus. Poema publicado em livro em 1908.

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