14 outubro 2006

O apanhador no campo de centeio

J. D. Salinger

1.
Se vão mesmo querer ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde eu nasci, como passei a porcaria da minha infância, o que meus pais faziam antes que eu nascesse, e toda essa lenga-lenga tipo David Coperfield, mas, para dizer a verdade, não estou com vontade de falar sobre isso. Em primeiro lugar, esse negócio me chateia e, além disso, meus pais teriam um troço se eu contasse qualquer coisa íntima sobre eles.
(...)

3.
Sou o maior mentiroso do mundo. É bárbaro. Se vou até a esquina comprar uma revista e alguém me pergunta onde é que estou indo, sou capaz de dizer que vou a uma ópera. É terrível.
(...)

4.
Não tinha nada de especial para fazer, por isso acompanhei o Stradlater até o banheiro, para bater bato enquanto ele fazia a barba. Éramos as únicas pessoas no banheiro, porque todo mundo ainda estava no jogo. Estava quente como o diabo, as janelas todas embaciadas. Havia umas dez pias, encostadas na parede. Stradlater ocupava a do centro; sentei numa, ao lado dele, e comecei a abrir e fechar a torneira de água fria – um hábito nervoso que eu tenho.
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8.
Era muito tarde para chamar um táxi ou coisa parecida, por isso fui mesmo a pé até a estação. Não era tão longe, mas fazia um frio danado, a neve dificultava a caminhada e as malas iam chacoalhando como umas desgraçadas de encontro a minhas pernas. Mas, de qualquer maneira, até que me sentia bem com o ar puro e tudo. O único problema era que o frio fazia meu nariz doer, e aumentava a dor que eu já estava sentido na parte de dentro do meu lábio inferior, onde o safado do Stradlater tinha me acertado.
(...)

9.
Assim que cheguei na Estação Pennsylvania fui entrando na primeira cabine telefônica que encontrei. Me deu vontade de telefonar para alguém. Deixei as malas do lado de fora, junto com à cabine, para poder vigiá-las, mas, lá dentro, não consegui pensar em ninguém para telefonar. Meu irmão D. B. mora em Hollywood. Minha irmã menor, a Phoebe, vai para a cama lá pelas nove horas – por isso não podia ligar para ela.
(...)

10.
Ainda era bem cedo. Não me lembro da hora, mas não era muito tarde. Se há uma coisa que detesto é ir para cama sem estar ao menos cansado.
(...)

21.
(...)
Sentei diante da escrivaninha do D. B. e fiquei olhando os troços que estavam ali por cima. Eram as coisas da Phoebe, da escola e tudo. O que mais tinha era livro. Em cima da pilha estava o Aritmética é Divertido. Abri a primeira página para dar uma olhada. Phoebe tinha escrito:

PHOEBE WEATHERFIELD CAUFIELD
4B – 1

Me esbaldei. O segundo nome dela é Josephine, e não Weatherfield. Mas ela não gosta e, por isso, cada vez que a vejo ela está usando um novo segundo nome.
(...)

22.
(...)
Seja lá como for, fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto – quer dizer, ninguém grande – a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer. Sei que é maluquice.
(...)

(*) Fonte: Salinger, J. D. s/d. O apanhador no campo de centeio, 12a edição. RJ, Editora do Autor.

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