Pastoral
Stefan Kunze
As representações musicais da natureza (sobretudo das cenas de tempestade) gozavam de amplo favor no século 18. Uma tradição que remonta à mais alta antiguidade, vê nas cenas pastorais e bucólicas a imagem da felicidade terrestre, da fusão do homem com a natureza, e da Arcádia ideal. A Sexta Sinfonia de Beethoven inscreve-se nessa tradição. A tonalidade de fá maior sempre foi a do pastoral e do arcádico. É certo que Beethoven não ilustra fenômenos naturais reais. A natureza aparece como que banhado-se na sensibilidade do sujeito contemplativo (inteligível). A fim de evitar que a “Pastoral” fosse interpretada como uma pintura musical ou mesmo música programática, como já era chamada à época, Beethoven acrescentou um esclarecimento ao título principal: “Sinfonia Pastoral ou Recordações da vida no campo (Mais expressão de sentimentos do que uma pintura)”. Com efeito, já existiam no tempo de Beethoven composições que pretendiam ser nada mais que descrições musicais de fenômenos naturais ou de acontecimentos reais. E Beethoven preocupava-se sobremaneira em distanciar-se da pintura musical pura e simples, já que esse tipo de música não desfrutava da alta consideração. Goethe, por exemplo, comentava (em uma carta a Zelter, datada de 1820), que “descrever sons com outros sons – trovoadas, estrondos, estalos e baques – é uma coisa detestável”.
Os contemporâneos de Beethoven já haviam intuído ou compreendido que a “Pastoral” na realidade não imitava uma natureza de existência concreta, mas que recriava na linguagem musical, de modo exemplar e ideal, um mundo da natureza, exprimindo ao mesmo tempo sua relação com o homem. O pano de fundo da obra é, indubitavelmente, a relação íntima de Beethoven com a natureza, de que conhecemos múltiplos testemunhos, e não uma exaltação romântica da natureza. Uma anotação que Beethoven extraiu em 1816 da História geral da natureza e teoria do céu, de Kant, denuncia claramente suas mais profundas intenções: “... Se na constituição do mundo manifestam-se a ordem e a beleza, então existe um Deus”. Seria a “Pastoral” uma teodicéia? Não vamos tão longe. Mas não há qualquer dúvida de que Beethoven produziu uma evocação sonora da idéia de que existe uma harmonia objetivamente possível, e categoricamente postulada, entre a condição humana e a natureza. A evocação da natureza aparece somente nos segundo e quarto movimentos. O primeiro, por outro lado, não é uma imagem da natureza, mas a musicalização desse sentimento de alegria que desperta a esperança de uma bela existência bucólica. Se a obra, em seu conjunto, não passa de uma “recordação”, de uma imagem “preservada”, o primeiro movimento marca o advento de um espaço imaginário atravessado pela natureza. Na Cena à beira de um regato, o centro da sinfonia, imerso em uma dimensão atemporal, existe apenas sob a forma de seu reflexo na sensibilidade humana. O terceiro movimento em forma de scherzo é, de uma certa maneira, o outro pólo de uma natureza mergulhada em si mesma, animada de paz e de harmonia, já que nos traz o homem esquecendo-se de suas preocupações na dança. Aqui o homem faz sua primeira aparição em cena. Mas ele também está prestes a experimentar uma natureza de forças plenamente desencadeadas: a dança é interrompida por uma tempestade inesperada – o homem toma consciência de sua vulnerabilidade. Na estrutura sinfônica global, o quarto movimento é na realidade um corpo estranho, a representação de forças elementares da natureza, destrutivas, fora do controle da emoção humana. E não é por acaso que este é o único movimento em que o procedimento descritivo, estritamente falando, tem seu lugar. É somente no último movimento que Beethoven representa a relação entre o homem e a natureza. Que essa relação esteja ligada precisamente a uma experiência do risco dos limites, sua representação é de uma profundidade quase abissal. O canto de agradecimento entoado após a salvação da catástrofe é um grandioso esboço da reconciliação e da felicidade. Esta sumária apresentação da obra explica porque Beethoven reuniu os três últimos movimentos, que estão intimamente ligados e condicionados um ao outro.
Na Quarta Sinfonia, o ser humano recria o mundo com uma inaudita e heróica energia e se revela na sua fantasia suprema. O encontro do sujeito com o Outro, que culmina no conceito de natureza, esse encontro habitado por uma imaginação contemplativa e ao mesmo tempo ativa, é o tema grandioso da Sinfonia “Pastoral”.
Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Ludwig van Beethoven: Sinfonia No 6 em fá maior, Opus 68, “Pastoral” (1984), com a Orquestra Filarmônica de Berlim, sob regência de Herbert von Karajan.
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