22 novembro 2006

A permanência do mundo e a obra de arte

Hannah Arendt

Entre as coisas que emprestam ao artifício humano a estabilidade sem a qual ele jamais poderia ser um lugar seguro para os homens, há uma quantidade de objetos estritamente sem utilidade e que, ademais, por serem únicos, não são intercambiáveis, e portanto não são passíveis de igualação através de um denominador comum como o dinheiro; se expostos no mercado de trocas, só podem ser apreçados arbitrariamente. Além disso, o devido relacionamento do homem com uma obra de arte não é “usá-la”; pelo contrário, ela deve ser cuidadosamente isolada de todo o contexto dos objetos de uso comum para que possa galgar o seu lugar devido no mundo. Da mesma forma, deve ser isolada das exigências e necessidades da vida diária, com as quais tem menos contato que qualquer outra coisa. Ao argumento, não interessa se esta inutilidade dos objetos de arte sempre existiu ou se, antigamente, a arte servia às chamadas necessidades religiosas do homem, tal como os objetos de uso comum servem a necessidades mais comuns. [...]


Dada a sua suma permanência, as obras de arte são as mais intensamente mundanas de todas as coisas tangíveis; sua durabilidade permanece quase isenta ao efeito corrosivo dos processos naturais, uma vez que não estão sujeitas ao uso por criaturas vivas – uso que, na verdade, longe de materializar sua finalidade inerente (como a finalidade de uma cadeira é realizada quando alguém se senta nela), só pode destruí-la. Assim, a durabilidade das obras de arte é superior àquela de que todas as coisas precisam para existir; e, através do tempo, pode atingir a permanência. Nesta permanência, a estabilidade do artifício humano, que jamais pode ser absoluto por ser o mundo habitado e usado por mortais, adquire representação própria. Nada como a obra de arte demonstra com tamanha clareza e pureza a simples durabilidade deste mundo de coisas; nada revela de forma tão espetacular que este mundo feito de coisas é o lar não-mortal de seres mortais. É como se a estabilidade humana transparecesse na permanência da arte, de sorte que certo pressentimento de imortalidade – não a imortalidade da alma ou da vida, mas de algo imortal feito por mãos mortais – adquire presença tangível para fulgurar e ser visto, soar e ser escutado, escrever e ser lido.
[...]

Fonte: Arendt, H. 1983. A condição humana. RJ, Forense-Universitária.


0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home

eXTReMe Tracker