19 janeiro 2007

Rotina, mero desencanto

Ronaldo Cagiano

Quantas enchentes
carregaram de nós
o que era melhor
do que restou?

Há tribunal para os holocaustos modernos?

A guerra é em nós,
mais que os tributários algozes da violência.
O homem e seu pequeno
evangelho de desgraças
cuida de seus jardins sinistros
de onde vemos
a rosa expandida num cogumelo assassino
manchando a Mesopotâmia.

Estou também triste
como aquele bedel de paletó azul
que atravessa a Esplanada
com sua rotina imutável,
em meio a estatísticas
que não nos eternizarão.

Sou tão pouco e breve como o cobrador do Grande Circular
em sua geografia de léguas sempre iguais.

As horas consomem-nos
e não ganhei o beijo da mulher, o abraço dos filhos,
porque a noite chegou antes, o corpo tem urgências
e o salário uma incógnita.

Entra dia, sai dia,
é aquela mediocridade envernizada
a redigir expedientes que jamais
serão considerados na História do Brasil.

Cada minuto é um suceder burocrático
de coisas que não me bastam
de braços recolhidos e palavras cansadas.

Cada funcionário em sua estação de trabalho
(esses currais envidraçados habitados por fantasmas)
repete bovinamente suas tarefas
e nem imagina que do outro lado do mundo
tantos morrem por nossa culpa
sob o delírio tecnocrata de uma batalha desigual.

Lá fora o chumbo das nuvens
desconhece o sofrimento
dos que vendem os filhos
nos sinais de trânsito.

E eu tentando conciliar
os litígios
dos homens que devem tanto
e outras contas sem rosto e sem nome
que dormem e já conhecem o novo século,
mas a fome dos homens não quer saber de mísseis, internet e fmi.

Se eu tivesse a chave do cofre,
às favas esse hospício e suas ilusões matemáticas,
verteria leite e mel
nos interstícios da África

mas, minha imaginação não vale nada,
não evita a multa de trânsito,
as palafitas às margens do Tietê
nem o que é compulsório, como a morte, as elites, o pfl e a cpmf.

Se meu instinto sentasse praça
eu não estaria mais no banco dos réus
(como a sociedade aviltada pelas humilhações quotidianas)
e cada um dos meus pares
– esses cadáveres adiados em seus currais de vidro –
não venderia as férias para viver o amanhã.

Fonte: poema publicado aqui com o devido consentimento do autor, a quem agradeço pela cortesia.

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