24 fevereiro 2007

O homem que calculava

Malba Tahan

[E narrou o seguinte:]

2.
Chamo-me Beremiz Samir e nasci na pequenina aldeia de Khói, na Pérsia, à sombra da pirâmide imensa formada pelo Ararat. Muito moço ainda, empreguei-me, como pastor, a serviço de um rico senhor de Khamat.

Todos os dias, ao nascer do sol, levava para o campo o grande rebanho e era obrigado a trazê-lo ao abrigo antes de cair a noite. Com receio de perder alguma ovelha tresmalhada e ser, por tal negligência, severamente castigado, contava-as várias vezes durante o dia.

Fui, assim, adquirindo, pouco a pouco, tal habilidade em contar que, por vezes, num relance calculava sem erro o rebanho inteiro. Não contente com isso passei a exercitar-me contando os pássaros quando, em bandos, voavam pelo céu afora. Tornei-se habilíssimo nessa arte.

Ao fim de alguns meses – graças a novos e constantes exercícios –, contando formigas e outros pequeninos insetos, cheguei a praticar a proeza incrível de contar todas as abelhas de um enxame! Essa façanha de calculista, porém, nada viria a valer, diante das muitas outras que mais tarde pratiquei! O meu generoso amo possuía, em dois ou três oásis distantes, grandes plantações de tâmaras e, informado das minhas habilidades matemáticas, encarregou-me de dirigir a venda de seus frutos, por mim contados nos cachos, um a um. Trabalhei, assim, ao pé das tamareiras, cerca de dez anos. Contente com os lucros que obteve, o meu bondoso patrão acaba de conceder-me quatro meses de repouso, e vou, agora, a Bagdá, pois tenho desejo de visitar alguns parentes e admirar as belas mesquitas e os suntuosos palácios da cidade famosa. E, para não perder tempo, exercito-me durante a viagem, contando as árvores que ensombram esta região, as flores que a perfumam, os pássaros que voam, no céu, entre nuvens.

E, apontando para uma velha e grande figueira que se erguia a pequena distância prosseguiu:

– Aquela árvore, por exemplo, tem 284 ramos. Sabendo-se que cada ramo tem, em média 347 folhas, é fácil concluir que aquela árvore tem um total de 98.548 folhas! Estará certo, meu amigo?

– Que maravilha – exclamei, atônito. – É inacreditável possa um homem contar, em rápido volver d’olhos, todos os galhos de uma árvore e as flores de um jardim! Tal habilidade pode proporcionar, a qualquer pessoa, seguro meio de ganhar riquezas invejáveis!

– Como assim? – estranhou Beremiz. – Jamais me passou pela idéia que se pudesse ganhar dinheiro contanto aos milhões folhas de árvores e enxames de abelhas! Quem poderá interessar-me pelo total de ramos de uma árvore ou pelo número do passaredo que cruza o céu durante o dia?

– A vossa habilidade – expliquei – pode ser empregada em 20.000 casos diferentes. Numa grande capital, como Constantinopla, ou mesmo Bagdá, sereis auxiliar precioso para o governo. Podereis calcular populações, exércitos e rebanhos. Fácil vos será avaliar os recursos do país, o valor das colheitas, os impostos, as mercadorias e todos os recursos do Estado. Asseguro-vos – pelas relações que mantenho, pois sou bagdali – que não vos será difícil obter lugar de destaque junto ao glorioso califa Al-Motacém (nosso amo e senhor). Podeis, talvez, exercer o cargo de vizir-tesoureiro ou desempenhar as funções de secretário da Fazenda muçulmana!

– Se assim é, ó jovem – respondeu o calculista –, não hesito. Vou contigo para Bagdá.

E sem mais preâmbulos, acomodou-se como pôde em cima do meu camelo (único que possuíamos), e pusemo-nos a caminhar pela larga estrada em direção à gloriosa cidade.

E daí em diante, ligados por este encontro casual em meio da estrada agreste, tornamo-nos companheiros e amigos inseparáveis.

Beremiz era de gênio alegre e comunicativo. Muito moço ainda – pois não completara 26 anos –, era dotado de inteligência extremamente viva e notável aptidão para a ciência dos números.

Formulava, às vezes, sobre os acontecimentos mais banais da vida, comparações inesperadas que demonstravam grande agudeza de espírito e raro talento matemático. Sabia, também, contar histórias e narrar episódios que muito ilustravam suas palestras, já de si atraentes e curiosas.

Às vezes punha-se várias horas, em silêncio, num silêncio maníaco, a meditar sobre cálculos prodigiosos. Nessas ocasiões esforçava-me por não o perturbar. Deixava-o sossegado, a fim de que ele pudesse fazer, com os recursos de sua memória privilegiada, descobertas retumbantes nos misteriosos arcanos da matemática, a ciência que os árabes tanto cultivaram e engrandeceram.

Fonte: Tahan, M. [1989?] O homem que calculava. SP, Círculo do Livro.

0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home

eXTReMe Tracker