camões/lampião
Sérgio de Castro Pinto
1.
camões ao habitar-se
no olho cego
sentia-se íntimo,
mais interno
que o habitar-se
no olho aberto.
2.
lampião ao habitar-se
nos dois olhos
a eles dividia:
o olho aberto matava
e o outro se arrependia.
3.
camões ao habitar-se
no olho cego
polia as palavras
e usava-as absorto
como se apalpasse
e possuísse o próprio corpo.
4.
lampião ao habitar-se
no olho cego
chorava os mortos
do seu interno,
mas o olho aberto
era casto
e via no matar
um gesto beato.
5.
camões ao habitar-se
no olho aberto
via-se todo ao inverso,
(pelo lado de fora),
mas rápido se devolvia
e fechava o olho aberto
pra ser total a miopia.
6.
lampião ao habitar-se
no olho murcho
via o olho aberto
estrábico e rústico
e compreendia
o olho aberto
mais murcho
que o olho cego.
7.
camões ao habitar-se
no olho murcho
via o mundo claro
dentro do escuro
e o olho aberto
era inútil
ao habitar-se
no olho murcho.
8.
lampião
atrás dos óculos
sentia-se acrescido, somado
e era mais lampião
naqueles óculos de aro.
9.
os óculos
lhes eram binóculos
íntimos sobre a miopia
e quando os óculos tirava
lampião se decrescia:
o olho cego somava
e o aberto diminuía.
10.
camões molhava a pena
como se no tinteiro
molhasse o olho cego
e tateando, cuidadoso
saía do seu interno.
11.
(no tinteiro as palavras
em forma líquida
juntam-se uma a uma
à retina, à pupila.)
12.
camões
escrevia com o olho cego
por senti-lo mais seu
que o olho aberto
e por poder o olho cego
infiltrar-se, ir mais dentro
e externar o seu inverso.
Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema originalmente publicado em 1970.
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