18 novembro 2008

O fruto

Fernando Guedes

1.
De zonas putrefactas e sujas
o longo apelo avança.
Despenteados cabelos
presos num caixão.
A criança em repouso
– ao lado o ventre
ainda dolorido.
Dois corpos na tepidez de Maio
vinculados na posse.

Dos cabelos, dos corpos, da criança,
o apelo se nutre, se avoluma,
percorre de onde a onde
as distâncias da Terra,
enlaça as células,
sorri na luz imaginada,
perfuma-se de nardo e da flor do cardo,
ascende sem medida no espaço
e nele se situa,
calculada abóbada para abrigo dos homens,
porta e torre.

2.
Na seca pastagem,
entre tojo rapado,
nasceu a novilha.
Fecundaram de súbito
os velhos sem esperança;
em longa procissão
a aldeia os seguiu,
transportando a arca
possuída já,
sangue formando o desejado
coração das colinas eternas,
cercado de lírios o alqueive
para o trigo que dum grão germinará.
A rosa de cerrada corola
era flâmula na torre,
batente na porta,
fonte e sustento do cordeiro.

Escorria o tempo no espelho:
três vezes se contaram os anos pelos dedos
da mão direita, da esquerda e da direita.

3.
Que te darei em troca do amor?
Dá-me a tua morte e tuas dores.

Mil dias e o voto se cumpriu.
Ao grito responderam gritos,
enovelaram-se neles os cabelos,
soltaram-se os cabelos
e uma criança fugiu.
Os corpos dos soldados lançaram-se na estrada,
exaustos da viagem.
Velozes cruzaram-se os homens;
na vinha, dobrados corpos
levam mais cestos para o lagar.
O medo e os muros são a nossa obra.

Por entre o fogo, o coro dos insectos
sibilava – quando virá a paz?
silvos aspirando a pax, não eirene,
anseios de modorra, inversão da escada,
calma transportada pela brisa,
paz que os pulmões dos homens não sopravam,
desequilíbrio mantido em equilíbrio,
fecho, não começo.
Só que a trégua é longe do caminho
onde se ergue a torre,
onde floriu a rosa,
onde o sangue da arca
construiu o apelo,
a abóbada de que o sangue se nutriu,
onde a guerra definiu o caminho
para se definir.

Ergue a tua casa,
negoceia com o teu dinheiro;
tece um vestido que te fique bem;
segue, em sua vida breve,
a vida da flor do feno.
Entra na comédia e diz o teu papel.
Aguarda, desperta em teu leito,
o teu Esposo.
Só da guerra se engendra a tua paz:
eirene, eirene.

4.
Nos caminhos da aldeia
germina a lama que o Inverno semeou.
Soltos, cabelos grossos cobrem corpos mortos.
Faminta, a criança trinca inutilmente
a murcha flor do cardo.
No lagar, homens sem vindima
esmagam grainhas ressequidas.
Pelos montes, uma recordação tênue
agita o feno levemente;
a mulher mais velha
guarda na memória a imagem de uma avó,
um coração ardendo na lareira.
Acendem-se as lâmpadas ao escurecer,
antes da primeira estrela.
Para lá de janelas abertas
desconhecidos encontram-se nos leitos.
Os carros de bois passam vazios no caminho,
sem ruído, na lama.
Paz sem espada.

Só na torre a torre,
uma rosa mantendo seu perfume.
Pela porta inviolada
escapam-se as palavras,
uma a uma,
formando o discurso,
o canto, o cântico da flor
possuída no princípio dos caminhos:
Firmei minhas raízes
sobre a tua cabeça
e elevei-me,
oliveira a florir no campo,
plátano junto ao rio.
Cedo ao discurso, ao canto,
para encaminhar teu ardor
para o meu perfume
forte, sedutor como a canela.
Sou a torre e a porta,
sou a rosa.

E coloca um sinal sobre o teu coração:
por ti nasceu a novilha
entre o tojo rapado.
Efigênia fugiu mas eu fiquei
– em breve terás vento,
apresta teus navios p’ra batalha.
No golpe mais forte de uma espada,
na lama que o teu ódio levantar,
na hora do saque, tu me encontrarás:
sou mais ágil do que o teu movimento
e todas as riquezas estão em minhas mãos.

Repousa na vitória deste encontro.
Trago comigo as tuas sete feridas:
vou levar-te para a tua tenda,
cobrir o teu sono com os meus cabelos.

Passados os três dias e as noites,
ao acordar, ver-me-ás no centro da luz,
sentada à tua porta.
Não procures a torre
nem a flâmula da rosa:
eu estou
como sempre fui,
e a minha formosura
te deslumbrará.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1963.

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