O estrangeiro
Albert Camus
1.
Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames.” Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.
[...]
4.
Mesmo no banco dos réus, é sempre interessante ouvir falar de si mesmo. Durante as falas do promotor e do meu advogado, posso dizer que se falou muito de mim, e talvez até mais de mim do que do meu crime. Eram, aliás, assim tão diferentes esses discursos? O advogado levantava os braços e admitia a culpa, mas com atenuantes. O promotor estendia as mãos e denunciava a culpabilidade, mas sem atenuantes. No entanto, uma coisa me incomodava vagamente. Apesar das minhas preocupações, às vezes eu ficava tentado a intervir e meu advogado me dizia, então, “cale-se, é melhor para o seu caso”. De algum modo, pareciam tratar deste caso à margem de mim. Tudo se desenrolava sem a minha intervenção. Acertavam o meu destino, sem me pedir uma opinião. De vez em quando, tinha vontade de interromper todo mundo e dizer: Mas afinal quem é o acusado? É importante ser o acusado. E tenho algo a dizer.” Mas, pensando bem, nada tinha a dizer. Devo reconhecer, aliás, que o interesse que se tem em ocupar as pessoas não dura muito tempo. Por exemplo, o discurso do promotor me cansou logo. Apenas me impressionaram ou despertaram meu interesse alguns fragmentos, gestos ou tiradas inteiras, mas desvinculadas do conjunto.
A essência do seu pensamento, se compreendi bem, é que eu premeditara o crime. Pelo menos foi isso que tentou demonstrar. Como ele próprio dizia:
– Provarei o que digo, senhores, e eu o farei duplamente. À luz ofuscante dos fatos, em primeiro lugar, e em seguida sob a iluminação sombria que me será fornecida pela psicologia desta alma criminosa.
[...]
Fonte: Camus, A. 1998 [1942]. O estrangeiro, 17ª edição. RJ, Record.
1 Comentários:
Vivemos pra alimentar esse vampiro
Pra garantir que seus crimes nunca sejam punidos
Pra assegurar a felicidade de nossos estupradores
Vivemos para circular
e para manter a circulação
Pra nutrir a engenharia surda
Vivemos para o desejo de viver mais
Pelo desejo de conforto
pra anestesiar nossas engrenagens
Vivemos para assistir a decomposição
de nossos filhos, casa e caráter
Vivemos?
Pois que eu diga que sim
Que sangraremos o vampiro
pendurado em um galho, com um corte no pescoço
Que perfuraremos o estuprador
em cada ponto que nos possa entreter
Que fecharemos cada vaso da cidade
pra conhecer a beleza da gangrena
Que celebraremos o desconforto
de cada passante, pedante e passivo
Daí então, sabendo que a dor do amortecimento é pior do que a da ferida
,
viveremos
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