11 outubro 2009

Lagoa Santa

Henrik Stangerup

1.
A hora das explorações nas grutas está para se encerrar. Ossadas esparramam-se por todos os cantos da pequena e modesta casa, no chão, nas mesas, no anexo do lado de fora. Algumas estão embrulhadas em papel de jornal, outras dentro de caixas, mas muitas, apenas com pequenas etiquetas coladas, ainda dependem de arrumação. Um punhado amontoa-se num canto do jardim à espera de ser catalogado. São ossadas que Dr. Lund sente dificuldade em classificar e mesmo desconfia que já sejam do período histórico. Dr. Lund está cansado, mas sente orgulho do que realizou. Ao longo de quase dez anos, sozinho, com a ajuda de apenas alguns negros relaxados e de Brandt, quando não estava ocupado com seus pincéis e cavaletes, conseguiu realizar um trabalho que exigiria pelo menos dez dos mais lúcidos cientistas. Para tanto, viajou milhares de quilômetros em lombo de cavalo ou burro, pernoitou deitado sobre peles de boi e abrigado por cobertores esburacados em incômodas reentrâncias das grutas, enquanto os fachos eram dispostos ao longo do trajeto de modo a lhe permitir, com rapidez, durante a noite, encontrar o caminho de volta para fora, se as dores no peito, por acaso, se anunciassem.

Sacrificou qualquer forma de conforto. Meses se passavam entre duas refeições que se pudessem chamar de dignas; apenas debaixo de quedas d’água, ou em sua casa de Lagoa Santa, tinha oportunidade de lavar-se desse pó que por semanas inteiras o impregnava. Teve acessos de febre, a sede martirizava-o quando se perdia pelos campos cerrados e, por vezes, era tão forte o sol que lhe nasciam chagas na testa. Plantas arranhavam-lhe a pele, insetos mordiam-no, terríveis dores de barriga obrigavam-no a recolher-se à cama por semanas a fio. Sim, Dr. Lund sente orgulho por ter sabido resistir a esses dez anos de intenso labor. Está ansioso por retornar em breve à Europa, à companhia de pessoa civilizadas, aos paralelepípedos das ruas, às calçadas, restaurantes, bibliotecas, sorrisos amáveis, olhares alertas, jornais sérios, escolares vivos, gente de comércio. E a Copenhague, onde haverá de se reencontrar com H. C. Oersted e Schouw e Forchhammer e Reinhardt, e onde poderá passar agradáveis horas noturnas em companhia da família. E a Paris, onde trocará idéias com seus colegas franceses e participará dos debates em torno do testamento científico de Cuvier. Mas é no Sul da França que mora seu coração. Na Provença. É ali que pensa em morar a maior parte do ano, envolto num perfume de lavanda e tomilho, e freqüentes incursões até Roma, Paris e Viena. Mais meio ano e será ainda uma vez europeu, tal como se sente de corpo e alma.
[...]

Fonte: Stangerup, H. 1983. Lagoa Santa: vidas e ossadas. RJ, Nórdica.

0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home

eXTReMe Tracker