23 janeiro 2010

Colméia da noite

Carpinejar

Não durmo, o sono escapa
como um presságio.
O fruto retorna à lama do caroço,
recomeçando o sumo
das ruínas.

Tento descansar no lado contrário.
Careço de escuro no próprio escuro.
Os objetos vão contornando
a sombra, alforriando os pertences.
A memória é o hábito de trocar os lençóis,
mas há manchas que permanecem
corroendo o tecido. Há manchas que limpam:
o orvalho, o sêmen, a urina,
sobras da natureza-morta.

Não durmo, protegida pelos
punhos cerrados da cama.
O sol da camisola branca confunde a pele,
avulso, sufocado na colméia da noite.
Um assassino rumina no insone,
sem o perdão de um dia depois do outro.

Distraio os pensamentos
por alguns minutos. Como ocupá-los
em madrugadas inteiras?

Uma milícia de abelhas assopra as pálpebras,
o assobio das asas.
Assusto-me com o freio das juntas,
ruído das vértebras e vísceras.
Não encontro recato, velamento,
para aquietar o fermento das veias.

Não entendo o silêncio
e o subestimo como trégua da fala.
Ele não começa ao cessar as palavras,
não termina ao pronunciá-las.

Corro ao caminhar lenta,
os chinelos arrastados, indecisa âncora,
contrariando o leme e a direção da proa.
A madeira se move, o solo é volúvel
como a água. Os ombros carregam
os parentes e as intrigas.
Afundada no sopro, arqueio as costas.
Estou presa à curvatura de um porão
a céu aberto.

Enquanto as horas passam,
o rosto pasta. Boi engordando
o declive do campo.

Amadureci a covardia em sarcasmo.
Posso rir do sofrimento.
Mistérios existem para simular profundidade.
Sou rasa, fútil. Não reverencio a primavera,
a mais sádica das estações.
Desde a infância, ela floresce minha asma.

Posso adiar a morte,
nunca o nascimento.
É impossível cortar a semente.

Fonte: edição de abril/maio/junho de 2003 da revista Ciência & Cultura. Poema publicado em livro em 2004.

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