Elegia a Jacques Roumain no céu de Haiti
Nicolás Guillén
Grave a voz possuía.
Era triste, era forte.
De lua e de aço. O porte
Todo ressoava e ardia.
Envolto em luz seguia.
Mas caiu. Desta sorte
Falou: – “É a morte.” A morte!
(Ainda era sonho o dia.)
Viste passar a sua
Fronte morena, a suave
Sombra, haitiano, viste?
Homem de aço e de lua.
Possuía a voz grave.
Era severo e triste.
Aí, bem sei, bem sabemos que está morto!
Morto. Confiadamente morto. Morto
Já sem remédio. Morto
Como se morre em toda parte. Morto.
De morte natural. Tenaz e morto.
Morto de terra. Morto
Com o morto riso de caveira. Morto
Deitado, longo, seco, puro... Morto
Sem roupa nem mortalha. Morto morto,
Desfeito o corpo morto:
Lisamente, singelamente morto!
Sem embargo, recordo.
Recordo, por exemplo,
Sua sobrecasaca
De prócer quotidiano:
A de Paris
De fumo gris,
De persistente gris
A de Paris,
E outra, de fumo azul, do trajo haitiano.
Recordo os seus sapatos
Que ainda eram franceses,
Certa calça listada que trazia
Numa fotografia
Como cônsul no México.
Recordo
Seu cigarro policial
De fogo perspicaz;
Recordo a sua escrita
De letras desligadas,
Independentes, tímidas,
Duras, de pé, pendidas para a esquerda;
A caneta-tinteiro curta, preta,
Grossa,
“Pelikan”,
De guta-percha e ouro;
Recordo
Seu cinto de fivela
Com duas letras.
(Ou uma? Não sei... Me falha
Neste ponto um pouco a memória:
Era uma só talvez, um grande R,
Mas não estou seguro...)
Recordo
Suas gravatas e meias e lenços;
Recordo
Seu porta-chaves,
Seus livros,
Sua carteira
(Uma carteira de Ministro,
Ambiciosa, de couro.)
Recordo
Seus poemas inéditos
Seus escritos polêmicos
E os seus apontamentos sobre negros...
Talvez também tudo isso haja morrido,
Ou, quando mais, são coisas de museu
Familiar. Conserva-as tu, Nicole?
Sim, conserva-as. Estão
Por aí... Guardo-as, sim, quero dizer
Que as recordo.
E o resto, o resto, Jacques
De que tanto falávamos?
Aí, o resto não muda, isso não muda!
Aí está, permanece
Como uma grande página de pedra
Que todos lêem, lêem, lêem;
Como uma grande página
Sabida e ressabida
Que todos dizem de memória,
Que ninguém dobra nem arranca
Desse tremendo livro aberto haitiano,
Desse tremendo livro aberto
Por essa mesma haitiana página sangrenta,
Por essa mesma única aberta página
Sinistra haitiana faz trezentos anos!
Sangue nas espáduas do negro inicial.
Sangue no pulmão de Louverture.
Sangue nas mãos de Leclerc,
Tremulosas de febre.
Sangue no látego de Rochambeau,
Com os seus cães sedentos.
Sangue no Pont-Rouge.
Sangue na Citadelle.
Sangue na bota dos ianques.
Sangue no punhal de Trujillo.
Sangue no mar, no céu, na montanha.
Sangue nos rios, nas árvores.
Sangue no ar.
(Esquecia dizer que justamente
Jacques, a personagem
Deste poema, murmurava às vezes
– O Haiti é uma esponja
Empapada de sangue!)
Quem espremerá essa esponja, essa insaciável
Esponja? Talvez ele,
Com seus dedos de sonho. Talvez ele,
Com seu poder celeste...
Talvez!
Ele, Monsieur Jacques Roumain,
Falando em nome
Do negro Imperador,
Do negro Rei,
Do negro Presidente,
E de todos os negros
Que nunca foram mais que
Jean
Pierre
Victor
Candide
Jules
Charles
Stephen
Raymond
André...
Negros de pé no chão no Champs de Mars,
Ou no morno mulato caminho de Pétionville,
Ou mais acima, no já frio branco caminho de Kenskoff:
Negros ainda não instalados,
Sombras zumbis,
Lentos fantasmas do café, da cana,
Carne febril, dilacerante,
Primária, pantanosa, vegetal!
Ele vai espremer a esponja.
Há de então ver o sol duro antilhano
Qual se estalasse telúrica veia,
Enrubescer o pávido oceano.
E flutuar sem baraço e sem cadeia
Colos puros em turba, num queixume
De corpos relembrando a dura peia!
Móvel incêndio de afiado lume
Virá lamber com a língua prometida
Desde a planície até o nublado cume.
Oh aurora dos tempos, incendida!
Oh mar de sangue, mar que desbordou!
O passado passado não passou.
A nova vida espera nova vida.
Ora bem: a coisa é esta, Jacques nunca esquecido.
Não porque hajas morrido,
Não porque te levaram, melhor dito,
Não porque te fecharam o caminho,
Parou ninguém, ninguém parou, longínquo amigo.
Muitas vezes faz frio,
É certo. Alguma vez um estampido
Nos ensurdece, e sobrevêm horas de ar líquido,
Lacrimosas, de estertor e gemido.
De quando em quando logra um rio
Destroçar uma ponte... Mas de cada suspiro
Nasce um novo menino.
Todos os dias pare a noite um sol maciço
E otimista, que fecunda o baldio.
Mói sua dura colheita o moinho.
Levanta-se, cresce a espiga do trigo.
Cobrem-se de rubras bandeiras os hinos.
Olhai! Chegam envoltos em pó e farrapos os primeiros vencidos!
O dia inicial inicia a grande luz de verão.
Venha o meu morto, grave, suave, haitiano irmão,
E erga outra vez, feita punho tempestuoso, a mão.
Cantemos juntos, amigo, a nossa fraterna canção.
Eis que floresce a velha lança.
Arde em nossas mãos a esperança.
A aurora é lenta, mas avança.
Cantemos em face dos séculos frescos recém-despertados,
Sob a estrela madura suspensa na noturna fragrância,
E ao longo de todos os caminhos rasgados
Na distância!
Cantemos, pois, querido,
Pisando o látego caído
Do punho do senhor vencido,
Um canto que ninguém tenha cantado:
(Eis que floresce a velha lança.)
Úmida canção estendida
(Arde em nossas mãos a esperança.)
De tua garganta em sombras, do outro lado da vida,
(A aurora é lenta, mas avança.)
Ao meu terrestre clarim de cobre ensangüentado!
Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema publicado em livro em 1958.
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