13 maio 2012

Verão coincidente


Eis como o verão
se abre de manhã
a começar nas pedras
e nas algas

Morno

flexível

um círculo aberto
na palma de mão fechada

sintoma branco de espuma
a predizer sobre um barco
horizontes de silêncio
em rua desencontrada

Mulher deitada num
quarto

Presença
sombra
desordem
ou árvore a vigiar
no começo de uma estrada

Dentro da luz que suspende
na lâmpada
o espaço intacto
verão de tacto na cidade
ao nível de uma casa

Terra nome
ajoelhada

terra dor

ou terra margem

no início foi a porta
dum templo disseminado

Eis como o verão
se entreabre
no começo de uma tarde

Dissolvido

quase árido

sobre os ombros tão
pesado
a corroer nos buracos
o homem que a trabalhar
desanima e não renasce

Flor de punho apertado
incitando à liberdade

inicial como um crime
que purifica e não
arde

Pela paz
é pela voz
que o verão traz a igualdade

Verão delírio
e defraudado
gaivota num caís de embarque

Verão dureza na cidade

Lento

escaldante

Uma cabra

no vidro o brilho
da água
que se entorna descuidada

Curto

Sexo

Ambiguidade
de abelha
memória alada

Verão de beijo
ou de saudade

Verão de amor
sobre uma praia

muralha dificuldade
de movimentos arrastados

Verão de corpo
sono ou bronze

suicídio sem cadáver

Verão passado
imponderável

Calmo

Intacto

Vegetal

Verão metal arrepiado
debruçado num
terraço

Liso dócil maleável

Eis como o verão
para a noite
se desdobra e se refaz

Cílio
animal convexo
poente insubordinado

Noite mole pelos
dedos

diagonal
pelo o hálito

Sedução
ou movimento

Eis como o verão
é mais lento
nos peixes de um aquário
plantas
e sonolentos submarinos cinzelados

Eis como o verão
oceano

verão distância

verão parágrafo

é infância de momento
ao recordar por palavra

Para lá inumerável
na espessura paralela
da retina ou no vácuo

Verão que ao contrário
é fêmea
cor habitada por baixo

e sobre a anca ou asfalto
sucessão intimidade

Eis como o verão
na madeira é objecto
ou na areia
pernoita dentro das algas

Fonte (com pequenos ajustes): Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1962.

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