Verão coincidente
Eis como o verão
se abre de manhã
a começar nas pedras
e nas algas
Morno
flexível
um círculo aberto
na palma de mão fechada
sintoma branco de espuma
a predizer sobre um barco
horizontes de silêncio
em rua desencontrada
Mulher deitada num
quarto
Presença
sombra
desordem
ou árvore a vigiar
no começo de uma estrada
Dentro da luz que suspende
na lâmpada
o espaço intacto
verão de tacto na cidade
ao nível de uma casa
Terra nome
ajoelhada
terra dor
ou terra margem
no início foi a porta
dum templo disseminado
Eis como o verão
se entreabre
no começo de uma tarde
Dissolvido
quase árido
sobre os ombros tão
pesado
a corroer nos buracos
o homem que a trabalhar
desanima e não renasce
Flor de punho apertado
incitando à liberdade
inicial como um crime
que purifica e não
arde
Pela paz
é pela voz
que o verão traz a igualdade
Verão delírio
e defraudado
gaivota num caís de embarque
Verão dureza na cidade
Lento
escaldante
Uma cabra
no vidro o brilho
da água
que se entorna descuidada
Curto
Sexo
Ambiguidade
de abelha
memória alada
Verão de beijo
ou de saudade
Verão de amor
sobre uma praia
muralha dificuldade
de movimentos arrastados
Verão de corpo
sono ou bronze
suicídio sem cadáver
Verão passado
imponderável
Calmo
Intacto
Vegetal
Verão metal arrepiado
debruçado num
terraço
Liso dócil maleável
Eis como o verão
para a noite
se desdobra e se refaz
Cílio
animal convexo
poente insubordinado
Noite mole pelos
dedos
diagonal
pelo o hálito
Sedução
ou movimento
Eis como o verão
é mais lento
nos peixes de um aquário
plantas
e sonolentos submarinos cinzelados
Eis como o verão
oceano
verão distância
verão parágrafo
é infância de momento
ao recordar por palavra
Para lá inumerável
na espessura paralela
da retina ou no vácuo
Verão que ao contrário
é fêmea
cor habitada por baixo
e sobre a anca ou asfalto
sucessão intimidade
Eis como o verão
na madeira é objecto
ou na areia
pernoita dentro das algas
Fonte (com pequenos ajustes): Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1962.
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