A mão no arado
Ruy Belo
Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a
reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e
os anos nunca lhe faltará
Oh! como é triste envelhecer à porta
Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um
coração tardio
Oh! como é triste
arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das
extremas manhãs do verão
ao longo do mar
transbordante de nós
no demorado adeus da
nossa condição
É triste no jardim a
solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as
casas da cidade
até uma vaga promessa de
rio
e a pequenina vida que se
concede às unhas
Mais triste é termos de
nascer e morrer
e haver árvores ao fim da
rua
É triste ir pela vida como quem
É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar
humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono
concluir
que era o verão a única
estação
Passou o solitário vento
e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao
fundo da verdura
como rios que sabem onde
encontrar o mar
e com que pontes com que
ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de
uma água para sempre dita
Mas o mais triste é
recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar castanhas depois da tourada
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo
na tarde de novembro
e ter como futuro o
asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma
infância
revendo tudo isto algum
tempo depois
A tarde morre pelos dias
fora
É muito triste andar por
entre Deus ausente
Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente.
Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1962.
Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente.
Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1962.
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