Por quem os sinos dobram
Wander Piroli
Ketchum, Sun Valley. Ernest Hemingway matou-se acidentalmente e Hemingway suicidou-se com um tiro de fuzil, espingarda, pistola e rifle na cabeça. Aí está o fato visto pelas agências telegráficas. Quase ao mesmo tempo irrompeu nos jornais aquele rosto redondo e barbudo, queimado de sol, ao qual o mundo já estava acostumado. Ora ao lado de sua última esposa nas selvas da África ou conversando com um barman em Havana. Ora em Veneza escrevendo Do outro lado do rio, entre as árvores, ou na barca Pilar de arpão em punho. Aqui o temos em Paris com seu amigo Gary Cooper, ou em Pamplona abraçado ao jovem toureiro Ordoñez. Eis agora o Velho de calção e descalço no terreno de seu sítio perto de Havana. Há ainda uma foto que o mostra esquiando na Suíça, outra jogando tênis e uma terceira no corner de um boxeador. Sempre o vimos de pé. Até para escrever, conservava-se de pé. Quem é, afinal, esse velho homem? Hemingway já havia morrido outras vezes, principalmente em 1954, e muita gente passou por cima dos recentes detalhes e preferiu não acreditar sequer na notícia de sua morte. Alimentava-se inclusive a suspeita de que o Velho Homem não morreria nunca. E isto de certa forma é verdade, pois segundo Guillén os grandes mortos não morrem. A família, porém, confirmou: Hemingway matou-se acidentalmente, quando limpava o fuzil. Mas logo surgiu outra versão: suicídio. Acidente ou suicídio? Vamos supor que o Velho tenha simplesmente colocado os dois canos do rifle de encontro ao céu da boca e em seguida puxado o gatilho. O certo é que o Velho estava sozinho e, naquele momento, sua mulher Mary roncava. A mulher despertou com o estampido, e, quando foi ver, o homem estava morto. O rifle era de calibre 32, e o negócio se deu na manhã de domingo, dia dois, às 7:30. E tinha sido um tiro puro e exato, como as suas melhores páginas: “Alguns utilizam a tradição nativa do Colt ou Smith and Wesson, esses instrumentos bem construídos que eliminam a insônia, fazem cessar o remorso, curam o câncer, evitam falências e abrem uma porta para posições intoleráveis, apenas com a pressão de um dedo; esses admiráveis instrumentos americanos, tão seguros em seus efeitos, tão bem desenhados para terminar o sonho americano quando o mesmo se transforma em pesadelo, e que tem como única inconveniência a sujeira que deixam para os parentes limparem.” (De Ter e não ter.)
Hemingway nasceu no dia 21 de julho de 1899, em Oak Park, subúrbio burguês de Chicago. O pai, médico de projeção, desde criança o iniciara nos segredos da caça e da pesca (Nos seus primeiros contos, podemos distingui-lo no menino Nick). Aprende a tocar violoncelo (por insistência da mãe, que era pintora e musicista). Cresceu entre o violoncelo e os bosques e lagos de Michigan. Faz os seus estudos no colégio de Oak Park, dedica-se ao beisebol e redige uma coluna no jornal escolar. Segundo um de seus colegas de turma, Hemingway era um rapaz simpático, afável e cortês. Nessa época, abandona a família e a escola. “Construí minha vida desde que tinha 16 anos. Trabalhei como jornaleiro, lavrador, lava-pratos, servente, boxeador...” Retorna ao lar algum tempo depois e conclui o seu curso em 1917. Trabalha durante sete meses no Kansas City Star. (“No Star éramos obrigados a escrever frases simples e puramente informativas. Isso é bastante útil para todo escritor... eu começava a assimilar os pequenos fatos em que ninguém reparava e que constituem as emoções”.) Primeira Guerra. Hemingway é recusado pelo Exército americano em virtude de um defeito visual. Consegue alistar-se na Cruz Vermelha, como chofer, e vai para o front italiano em 1918. É atingido por um morteiro austríaco, juntamente com três companheiros; dois deles morrem com as pernas arrancadas; Hemingway arrasta-se com o outro nos ombro, ambos feridos; são alvejados por metralhadoras; Hemingway escapa, apresentando o seguinte saldo: 237 estilhaços incrustados nas pernas e balas nos joelhos e tornozelos. Foi este o seu primeiro contato com a morte. (“Morri naquele instante. Senti que a minha alma ou coisa que o valha saía do meu corpo como um lenço de seda puxado do bolso. Parou e em seguida voltou e tornou a entrar [em] mim e eu não estava mais morto.”) Esses ferimentos lhe propiciaram 12 intervenções cirúrgicas e duas medalhas, fora o material para o romance Adeus às armas. Finda a matança, volta para Chicago (ver o conto O soldado no seu lar) e dedica-se ao jornalismo. Em 1921, casa-se com Hadley Richardson (de quem terá um filho, John) e, com ela, vai fazer a cobertura da guerra entre a Grécia e Turquia para a imprensa americana. Em seguida, permanece um bom tempo em Paris, boemia, bebidas, touradas em Pamplona (ver O Sol também se levanta); amizade com Gertrude Stein (e a famigerada sentença: “Vocês são uma geração perdida”), Ezra Pound, Joyce, Scott Fitzgerald, aprendizado de escritor, divórcio, primeira caçada na África. Novo casamento em 1927, com Pauline Pfeiffer, de quem terá dois filhos (Patrick e Gregory), amiga de sua primeira esposa e também jornalista. Volta para os Estados Unidos, fixa-se durante muito tempo em Key West, Flórida, vida à beira mar, cujo ambiente lhe inspira o romance Ter e não ter. Um mês de caçada na África (ver o seu relato As verdes colinas da África e, depois, duas obras-primas: A vida curta e feliz de Francis Macomber e As neves do Kilimanjaro). Antes dessa viagem, porém, ocorre o suicídio de seu pai (Clemence), que o amargurou profundamente. Amargura que se reflete, inclusive, em sua obra. Mais tarde, parte para a Espanha, durante a guerra civil, como correspondente (ver Por quem os sinos dobram e o conto O velho na ponte). Divórcio outra vez. E novo casamento, agora com Martha Gethorn (de quem não terá nenhum filho). Temporada na China com a esposa. Divórcio. Estabelece-se finalmente em Cuba, num sítio perto de Havana. Segunda Grande Guerra – ei-lo com seu barco de pesca (de nome Pilar, personagem inconfundível de Por quem os sinos dobram) patrulhando o Oceano Atlântico. Correspondente de guerra, incursões com a RAF. É dos primeiros a entrar em Paris comandando um batalhão irregular; e, antes que a cidade seja libertada, ele tem o cuidado de libertar o Hotel Ritz ou, antes, a sua adega, pois era preciso comemorar o acontecimento. E não havia melhor ambiente para fazê-lo do que nos bares de Saint Germain-des-Près. Volta a Cuba, pescarias no Gulf Stream, lenta elaboração de O velho e o mar. Em 1953, pela primeira vez depois da guerra civil, revê a Espanha, sua segunda pátria, percorre os mesmo lugares que descreveu em O Sol também se levanta e, decepcionado, ali constata a presença de uma enxurrada de turistas cretinos. África novamente em 1954. O avião cai, é considerado morto. Salva-se com este saldo: ruptura do rim, queimaduras graves e duas costelas quebradas. Diverte-se no hospital lendo os necrológios que os jornais do mundo lhe dedicaram. Espanha em 1959, acompanha toda a temporada da corrida dos touros. Descreve para a revista Life a rivalidade entre os matadores Ordoñez e Dominguin (O verão sangrento, publicado em fins de 1960). Numa de suas últimas fotografias vemo-lo ao lado de Fidel Castro, em Havana, depois de um torneio de pesca.
Agora o Velho Homem está morto.
Agora o Velho Homem está morto.
Fonte: Piroli, W. 1997. Os sinos não dobraram para Hemingway. In: Rabêlo, J. M., org. Binômio: edição histórica. BH, Armazém de Idéias & Barlavento Grupo Editorial.
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