Queixa das almas jovens censuradas
Natália Correia
Dão-nos um lírio e um
canivete
E uma alma para ir à
escola
E um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola.
Dão-nos um mapa
imaginário
Que tem a forma duma
cidade
Mais um relógio e um
calendário
Onde não vem a nossa
idade.
Dão-nos a honra de
manequim
Para dar corda à nossa
ausência.
Dão-nos o prémio de ser
assim
Sem pecado e sem
inocência.
Dão-nos um barco e um
chapéu
Para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o
céu
Levado à cena num teatro.
Penteiam-nos os crânios
ermos
Com as cabeleiras dos
avós
Para jamais nos
parecermos
Connosco quando estamos
sós.
Dão-nos um bolo que é a
história
Da nossa história sem
enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra para o
medo.
Dão-nos a vista
recomendada
Duma janela sem comboio
Para não sabermos que
madrugada
Bebeu a seiva dum arroio.
Temos fantasmas tão
educados
Que adormecemos no seu
ombro
Sonos vazios, despovoados
De personagens do
assombro.
Dão-nos a capa do
evangelho
E um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um
espelho
Para pentearmos um
macaco.
Dão-nos um cravo preso à
cabeça
E uma cabeça presa à
cintura
Para que o corpo não
pareça
A forma da alma que o
procura.
Dão-nos um esquife feito
de ferro
Com embutidos de diamante
Para organizar já o
enterro
Do nosso corpo mais
adiante.
Dão-nos um nome e um
jornal,
Um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no
destino.
Dão-nos marujos de
papelão
Com carimbo no
passaporte.
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida. Nem é a
morte.
Fonte: Silva, A. C. &
Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em
livro em 1957.
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