Como entramos e como iremos sair da crise. II. A tragédia e a farsa
Felipe A. P. L. Costa [*]
1. Breve recapitulação e situação de momento.
Em 21 de janeiro, a OMS (Organização Mundial de Saúde) divulgou um primeiro alerta mundial a respeito de um novo e misterioso tipo de pneumonia. Os primeiros casos foram detectados em Wuhan, capital da província de Hubei, na região central da China. Após ter se espalhado por todas as províncias chinesas, o coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (Sars-CoV-2) foi exportado para outros países – para detalhes adicionais e referências, ver artigo anterior (aqui e aqui).
Em 11/3, diante da escalada nas estatísticas, a epidemia da doença do coronavírus 2019 (Covid-19), até então classificada pela OMS como uma emergência de saúde pública de interesse internacional, passou a ser referida e caracterizada como uma pandemia.
Em números absolutos, os 20 países mais afetados concentram agora 84% dos casos (de um total de 4.769.177) e 91% das mortes (de um total de 316.898) [1]. As estatísticas continuam a escalar, mas a um ritmo declinante. Em termos globais, muitos países já passaram pelo topo da curva e estão a descer o outro lado do morro [2].
No que segue, vou concentrar a minha atenção em dois países, Estados Unidos e Brasil.
2. A pandemia chega ao Novo Mundo.
Os primeiros casos nos Estados Unidos e no Brasil, de acordo com as autoridades sanitárias dos dois países, foram registrados na primeira e na segunda quinzena de fevereiro, respectivamente. Até meados de março, no entanto, a opinião pública ainda não tinha se dado conta de que já estávamos pisando em terreno minado. No Brasil, por exemplo, ninguém sequer aventou a possibilidade de suspender o Carnaval (21-25/2) (mas ver aqui) – exceto a posteriori...
Entre nós, brasileiros, diante de uma expansão aparentemente morosa (embora, os números subterrâneos já estivessem a escalar), muita gente passou a imaginar que a Covid-19 de fato não representaria uma ameaça séria à saúde pública.
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FIGURA. A figura que ilustra este artigo mostra o crescimento no número de casos da Covid-19 em cinco países (eixo vertical; em escala logarítmica, desde 1 até 10 milhões), entre 15/2 e 16/5. Estados Unidos, Rússia, Brasil e Reino Unido lideram a lista dos países mais afetados; a Itália foi o primeiro epicentro ocidental da pandemia. A taxa de crescimento diário no número de novos casos está abaixo de 3% em três desses países (Itália, 1,7%; EUA, 2,1%, e Reino Unido, 2,9%), mas ainda é relativamente alta nos outros dois (Brasil, 6,3%, e Rússia, 5,9%). (Compare com a figura que ilustra o artigo ‘O mundo, o país e a atropelada russa’.)
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Mas a origem do problema – i.e., das estatísticas exageradamente elevadas com as quais passamos a conviver nas últimas semanas – tem muito a ver com a inércia e a má-fé dos mandatários maiores dos dois países. Donald Trump e Jair Bolsonaro ainda não se cansaram de fazer declarações públicas pondo em dúvida a relevância e o impacto da pandemia. Logo no início, Trump passou a usar o rótulo ‘chinês(a)’ em relação ao vírus e à doença (ver aqui), enquanto Bolsonaro insistia em caracterizar a Covid-19 como uma ‘gripezinha’ (ver aqui).
Trabalho duro que é bom, nada. Tanto é que pouco ou nada parece ter sido feito em termos de prevenção, notadamente no caso brasileiro. Quando a epidemia ultrapassou os 100 primeiros casos registrados (3/3, nos EUA; 14/3, no Brasil), ainda havia quem acreditasse que a adoção de medidas de mitigação seria algo desnecessário. Ou que as medidas seriam de aplicação apenas pontual e, de resto, bastante passageira. Ainda hoje, declarações evasivas, quando não abertamente mentirosas, continuam a inundar a opinião pública dos dois países.
3. Dois ilusionistas egocêntricos.
Em 19/3, os EUA ultrapassaram os 10 mil casos registrados (13.898, em 19/3). O discurso de Trump só experimentaria uma reviravolta no final daquele mês, quando o país ultrapassou os 100 mil casos (105.217, em 27/3). Em 30/3, ele disse que seria um “trabalho muito bom” (ver aqui) se os EUA saíssem da pandemia com ‘apenas’ 100 mil mortes. Em 23/4, ao que parece querendo demonstrar preocupação e interesse pela luta contra a Covid-19, ele aventou a possibilidade de que a administração de desinfetantes (por via oral ou por injeção) talvez fosse capaz de ‘limpar’ o interior do corpo, livrando assim os indivíduos infectados do vírus (ver aqui). A insanidade presidencial teve consequências... Nos dias que se seguiram, a imprensa reportou que cidadãos de diferentes estados do país estavam sendo hospitalizados após terem ingerido desinfetantes. Trump, por sua vez, tratou de dizer que não assumia nenhuma responsabilidade pelos desdobramentos de sua fala (ver aqui).
As falas do presidente brasileiro são igualmente desencontradas e insanas. Em 28/4, tendo o país ultrapassado a marca de 5 mil mortes (e mais de 70 mil casos), Bolsonaro foi questionado por um repórter sobre a escalada dos números, ao que ele respondeu “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias [um dos sobrenomes dele], mas não faço milagre” (ver aqui).
Os dois presidentes não estão pessoalmente preocupados com a pandemia. Muito longe disso. Ambos têm outras preocupações: ambos são candidatos à reeleição – em 2020, nos EUA; em 2022, no Brasil. Razão mais do que suficiente – aos olhos deles e de seus respectivos gurus e conselheiros – para não se colocar a mão dentro de uma cumbuca. (Na Rússia, curiosamente, Vladimir Putin segue o mesmo receituário, embora não pelos mesmos motivos.)
Em resumo, se envolver com problemas (em especial, os espinhosos) – razão pela qual, aliás, os políticos são eleitos nas chamadas sociedades democráticas – pode comprometer algo verdadeiramente sério e importante: a reeleição.
4. Coda.
Trump e Bolsonaro ignoram os mortos. Ignoram os hospitais congestionados e mal equipados. Ignoram os problemas sociais.
Ambos preferem se envolver com ilusionismo. Afinal, foi o ilusionismo (e doses generosas de ‘crimes dentro da lei’) que os conduziu até a presidência. Ambos têm equipes (numerosas e caras) especializadas em promover a ‘luta política virtual’. E o uso corriqueiro de redes sociais ocupa a maior parte da agenda desse pessoal, seja para fins de autopromoção, seja para alertar os seguidores (bem menos numerosos do que eles próprios alardeiam) a respeito de novos e perigosos inimigos, como o ‘vírus chinês’ ou o ‘vírus comunista’.
E eles não vão abandonar o roteiro que adotaram. Lembrando que, como bem resumiu o linguista e ativista estadunidense Noam Chomsky (ver aqui), “Trump é tragédia, Bolsonaro é farsa”.
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Notas.
[*] Para detalhes e informações sobre o livro mais recente do autor, O que é darwinismo (2019), inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros livros e artigos, ver aqui.
[1] As estatísticas são de hoje (18) à tarde. Os 20 primeiros países da lista podem ser arranjados em cinco grupos: (a) Acima de 1 milhão de casos – Estados Unidos; (b) Entre 200 e 500 mil – Rússia, Brasil, Reino Unido, Espanha e Itália; (c) Entre 100 e 200 mil – França, Alemanha, Turquia, Irã e Índia; (d) Entre 50 e 100 mil – Peru, China, Canadá, Arábia Saudita e Bélgica; e (e) Entre 40 e 50 mil – México, Chile, Países Baixos e Paquistão. Desde o início, estou a acompanhar as estatísticas mundiais em dois painéis, ‘Mapping 2019-nCov’ (Johns Hopkins University, EUA) e ‘Worldometer: Coronavirus’ (Dadax, EUA). Mais recentemente, passei a acompanhar as estatísticas nacionais também por meio de um painel do Ministério da Saúde.
[2] Para uma introdução ao estudo dos padrões de crescimento, ver as duas primeiras partes do artigo ‘Corpos, gentes, epidemias e... dívidas’ (aqui e aqui).
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