30 julho 2020

Interações ecológicas, zoonoses e doenças contagiosas


1.

Viver é interagir.

Nenhum ser vivo é autossuficiente. Todo e qualquer recém-nascido depende de fontes externas de matéria e energia para construir e manter o seu corpo.

Não há bolhas nem vácuos ecológicos na natureza. Todo e qualquer organismo nasce, cresce e vive em um mundo previamente ocupado por outros organismos.

2.

Costumamos dividir o mundo vivo em duas partes bem desiguais.

Um primeiro grupo, relativamente pequeno, mas fortemente estruturado, é integrado por uns poucos indivíduos coespecíficos com os quais nós mantemos laços mais ou menos coesos e duradouros (pais, irmãos, filhos etc.).

E um segundo grupo, mais frouxo e heterogêneo e, claro, bem mais numeroso, no qual reunimos espécies com as quais nós habitualmente interagimos. De um ponto de vista antropocêntrico, os organismos aí incluídos representam basicamente recursos (e.g., plantas usadas na alimentação), além de inimigos naturais (e.g., vírus e outros patógenos) e competidores (e.g., pragas agrícolas).

3.

Adotando uma perspectiva ecológica mais ampla, podemos olhar para o mundo vivo e pensar em populações e comunidades.

Populações são agrupamentos de indivíduos coespecíficos que vivem em um mesmo hábitat (ou em uma rede de hábitats interconectados). Vale notar que nem todos esses indivíduos interagem entre si do mesmo jeito ou com a mesma intensidade, sobretudo em populações que ocupam uma extensa área de distribuição geográfica.

Em sentido amplo, comunidades são definidas como agregados de populações de espécies distintas que vivem em um mesmo hábitat (ou em uma rede de hábitats interconectados). Ocorre que nem todas as espécies que vivem juntas interagem de modo sistemático e significativo. Uma definição mais rigorosa, portanto, não deveria adotar como critério apenas a convivência. Comunidades seriam mais bem definidas como agregados de populações de espécies distintas que convivem e interagem entre si.

Um lago e um fragmento de floresta, por exemplo, abrigam um sem número de populações de espécies distintas. E abrigam não apenas uma, mas inúmeras comunidades. Agora, para decidir quem participa ou não de uma mesma comunidade, não basta examinar a proximidade física, é necessário investigar e saber um pouco sobre as interações entre as populações ali presentes [1].

4.

A vida no interior das comunidades é regida pelas interações. Estas, no entanto, independem de contato físico ou mesmo de encontros.

Encontros breves e fortuitos estão a ocorrer o tempo todo, mas quase todos são irrelevantes ou desprovidos de implicações na vida dos envolvidos. Por sua vez, algumas das interações mais intensas e relevantes costumam ocorrer por vias indiretas, sem que os envolvidos sequer se encontrem. É o que acontece no caso de interações que são mediadas pela exploração de uma base comum de recursos ou por meio de uma terceira espécie (e.g., um predador que se alimenta de duas espécies de presas). Vejamos um exemplo.

5.

Considere duas espécies, X e Y, que se alimentam do néctar das flores de uma mesma espécie de planta. Porém, basta que X seja um animal de hábitos diurnos e Y, um animal noturno, para que as duas espécies sequer se encontrem. Ainda assim, no entanto, as duas populações podem interagir de modo sistemático e significativo, cada uma delas tendo um tremendo impacto na vida da outra. Veja: se a produção de néctar é limitada e se o consumo implica em diminuição do suprimento disponível para consumo futuro, a presença de X terá um impacto negativo sobre Y, assim como Y terá um impacto negativo sobre X. (Em casos assim, sempre que uma das espécies é removida – para fins experimentais, por exemplo –, a espécie remanescente tende a passar por uma fase de apreciável crescimento populacional.)

6.

No cômputo final, as interações significativas (tanto em termos ecológicos como evolutivos) são aquelas que têm algum impacto (positivo ou negativo) sobre um ou mais componentes da aptidão (e.g., crescimento, longevidade, fertilidade) dos envolvidos. No caso mais simples, quando apenas duas espécies são analisadas de cada vez, as diferentes combinações possíveis podem ser arranjadas em três categorias: mutualismo (+/+), competição (–/–) e exploração (+/–).

Uma interação é dita mutualística quando o seu efeito sobre as duas espécies é mutuamente positivo (e.g., promovendo o crescimento individual ou o crescimento numérico das populações). Quando o efeito é mutuamente negativo, como foi o caso do exemplo dos visitantes florais citado acima, diz-se que a interação é competitiva. Por fim, sob o rótulo genérico de exploração, reunimos aqui aquelas interações que são parcialmente antagônicas: a interação é positiva para uma das espécies, mas é negativa para a outra. É o que acontece no parasitismo, por exemplo, e na predação [2].

*


FIGURA. Flagrante de interação direta envolvendo contato físico: uma mosca (família Tachinidae) está a depositar seus ovos sobre uma lagarta de mariposa (f. Sphingidae) [3]. Trata-se de uma relação de exploração referido na literatura técnica como parasitoidismo (um meio-termo, digamos assim, entre parasitismo e predação). Os parasitoides são definidos em função dos hábitos alimentares de suas larvas e, embora os detalhes variem de acordo com a espécie, o quadro geral é mais ou menos o mesmo: as larvas crescem e se desenvolvem no interior do corpo do hospedeiro, enquanto o adulto é de vida livre (como é o caso da mosca da foto). O hospedeiro em geral permanece vivo e, muitas vezes, ativo até a saída do parasitoide. A maioria dos parasitoides é de pequeno porte (< 2 mm). As espécies conhecidas pertencem a umas poucas ordens de insetos, notadamente os dípteros (moscas) e os himenópteros (vespas). Os hospedeiros, por sua vez, pertencem a um leque bem mais amplo e variado de grupos, incluindo várias ordens de insetos, além de alguns outros grupos de artrópodes.

*

7.

Um parasito é um organismo que obtém seus nutrientes de um ou de uns poucos hospedeiros individuais, normalmente provocando dano, mas sem causar morte imediata. Quando um parasito coloniza um hospedeiro, diz-se que este abriga uma infecção. Se a infecção ocasiona sintomas claramente prejudiciais ao hospedeiro, diz-se que este tem uma doença [4].

Doenças causadas por parasitos são genericamente referidas como parasitoses e os parasitos que provocam tais doenças são genericamente referidos como patógenos. O atributo ‘organismo patogênico’, no entanto, não é algo que seja invariável e universal. Um parasito que é patogênico para a espécie A, pode não ter o mesmo efeito quando está na espécie B. Além disso, um parasito pode ser patogênico apenas em determinadas circunstâncias (e.g., quando o hospedeiro já abriga outros parasitos).

8.

Ao menos 1.415 diferentes organismos infecciosos causam ou podem causar doenças em seres humanos [5]. A maioria (61%) dessas parasitoses é de origem zoonótica (leia-se: quando os seres humanos contraem a infecção por meio de algum animal previamente infectado). Entre as novas doenças infecciosas que estão a surgir, este percentual é ainda maior: 75% das doenças emergentes são de origem zoonótica.

A Covid-19 é uma doença emergente de origem zoonótica, embora ainda se discuta a identidade do reservatório natural do vírus (SARS-CoV-2). Exemplo clássico e famoso de zoonose é a raiva (e.g., cães e gatos infectados podem transmitir a doença). Trata-se igualmente de uma virose. (Seu agente etiológico é um vírus do gênero Rhabdovirus.) Mas o agente etiológico das zoonoses nem sempre é um vírus. Pode ser uma bactéria, um fungo, um protozoário ou um verme [56].

9.

Zoonoses podem ser disseminadas por vias diretas ou indiretas. No primeiro caso estão as doenças contagiosas e as infecções provocadas pela ingestão do parasito. No caso das doenças contagiosas, diz-se que a transmissão é direta porque indivíduos sadios são infectados ao entrarem em contato (íntimo ou não) com algum indivíduo previamente infectado (doente ou não). (Embora não estejamos aqui a tratar especificamente delas, não custa lembrar: as infecções sexualmente transmissíveis, como a gonorreia, a sífilis e a Aids, também são apropriadamente rotuladas de contagiosas.)

No segundo caso, a transmissão do parasito depende da presença de uma terceira espécie, referida como vetor. Não há contágio. O que ocorre é uma triangulação: em decorrência dos seus hábitos de vida, o vetor estabelece uma conexão entre hospedeiros infectados (doentes ou não) e hospedeiros sadios (coespecíficos ou não). Febre amarela, dengue e doença de Chagas são exemplos de zoonoses cuja disseminação depende da ação de um vetor – e.g., dípteros culicíneos, nos dois primeiros casos, e percevejos triatomíneos, no último [7].

*

Notas.

[*] Este artigo é primeiro de uma série intitulada ‘Epidemias como um fenômeno populacional’. Para detalhes e informações sobre o livro mais recente do autor, O que é darwinismo (2019), inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros livros e artigos, ver aqui.

[1] Certas comunidades atravessam e ignoram a barreira física mais ou menos óbvia que muitos observadores julgam enxergar entre hábitats descontínuos (e.g., um lago e a vegetação de terra firme em volta) – para um exemplo, ver Knight, TM & mais 4. 2005. Trophic cascades across ecosystems. Nature 437: 880-3.

[2] Para detalhes, exemplos e referências a respeito dos itens 1-6, ver o meu O que é darwinismo (2019).

[3] Fonte da foto: Stireman, JO, III; O’Hara, JE & Wood, DM. 2006. Tachinidae: Evolution, behavior, and ecology. Annual Review of Entomology 51: 525-55.

[4] Para detalhes e discussões adicionais, ver Begon, M; Townsend, CR & Harper, JL. 2007. Ecologia, 4ª ed. Porto Alegre, Artmed.

[5] Ver Taylor LH; Latham SM & Woolhouse MEJ. 2001. Risk factors for human disease emergence. Philosophical Transactions of the Royal Society of London B 356: 983-89; sobre doenças emergentes, ver Garrett, L. 1995. A próxima peste. RJ, Nova Fronteira.

[6] Para exemplos e discussões detalhadas, ver Tortora, GJ; Funke, BR & Case, CL. 2006. Microbiologia, 8ª ed. Porto Alegre, Artmed; e Ray. L. 2008. Parasitologia, 4ª ed. RJ, Guanabara Koogan.

[7] Sobre culicíneos e triatomíneos, ver Ray (2008), citado na nota 5. Para diferenciar os culicíneos (e.g., StegomyiaAedes e Culex) de outros culicídeos (e.g., Anopheles), ver Consoli, RAGB & Oliveira, RL. 1994. Principais mosquitos de importância sanitária no Brasil. RJ, Fiocruz.

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