Sonhaste-me engenheiro naval com uma bolsa de estudo
Sonhaste-me engenheiro naval com uma bolsa de estudo
numa cidade italiana e com um futuro radioso
que fizesse a inveja dos teus colegas entorpecidos
pela rotina do escritório, entre cheques, ordens de compra
e guias de remessa, e eu saí poeta, com uma biografia
soturna e grave que se resume na solidão dos versos
urdidos com magoado artifício em sucessivas vigílias,
em ócios estivais, em nocturnos desesperos. Cria um
pai um filho para isto: para ser poeta num trágico
pequeno país que emigrou para dentro de si
com uma sofreguidão vegetal e um apetite alarve
de bacalhau e de cozido à portuguesa, com uma história
de pelejas e desembarques, de corso e de partilha,
de assédio e razia, com uma vocação insuspeitada
para o fingimento e para a farsa, para a auto-ironia
e para discreto suicídio. Já cá não estás para ver
o que dói ser poeta, cronista de mitos, alguém disse,
a imitar em falsete o coro das bacantes numa recatada
vila marítima, neste final de século, sufocado
pela cordas tensas, apertadas de infinita incerteza.
Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1991.
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