Sobre eugenia e hereditariedade
Valdeir Del Conti
Até meados do século XIX, os vários cruzamentos realizados e observados pelos seres humanos ao longo da história permitiam formar a percepção de que as crias reproduziam características de seus progenitores e isso também era amplamente admitido para os seres humanos. A existência de características individualizantes era geralmente explicada pela mistura de elementos, forças vitais ou espirituais, que ambos os pais forneciam aos filhos, a mistura poderia ser forte ou fraca ou ainda pendente para um dos lados; também se compreendia as características individualizantes como conseqüência de treino, educação e experiências que os indivíduos adquiriam durante sua trajetória de vida. Esse conjunto vago de idéias sobre como se dava o fenômeno da hereditariedade foi retratado e rearticulado nas diversas teorias que especularam, principalmente na segunda metade do século XIX, sobre o processo de transmissão de características entre as gerações [...].
Nesse contexto, a recepção pública da obra de Charles Darwin (1809-1882) e a implicação de que os seres humanos obedeciam, em termos biológicos, aos mesmos requisitos impostos às plantas e aos demais animais sugeriam a muita gente que, de alguma forma, se estaria ofendendo a dignidade humana. Diante disso, Darwin, em sua obra A origem das espécies (1859), evitou ao máximo qualquer consideração que sugerisse que o ser humano também estaria sujeito aos mesmos princípios da seleção natural que governariam a vida no planeta. Para não dizer que Darwin tenha negligenciado completamente o assunto, até mesmo porque as polêmicas que se seguiram à publicação de A origem das espécies tinham como tema principal o que a seleção natural dizia a respeito do ser humano, na obra Descent of man, and selection in relation to sex [...], de 1871, procurou estender também aos seres humanos os mesmos princípios da seleção natural. Contudo, pensar que o ser humano pudesse descender de um animal inferior era geralmente considerado um abuso para a visão de mundo de uma Inglaterra vitoriana [...].
Com o propósito de aplicar os pressupostos da teoria da seleção natural ao ser humano, Francis Galton (1822-1911), primo de Darwin, em 1883, reunindo duas expressões gregas, cunhou o termo “eugenia” ou “bem nascido” [...]. A partir desse momento, eugenia passou a indicar as pretensões galtonianas de desenvolver uma ciência genuína sobre a hereditariedade humana que pudesse, através de instrumentação matemática e biológica, identificar os melhores membros – como se fazia com cavalos, porcos, cães ou qualquer animal –, portadores das melhores características, e estimular a sua reprodução, bem como encontrar os que representavam características degenerativas e, da mesma forma, evitar que se reproduzissem [...].
Como ciência da hereditariedade, a eugenia no final do século XIX ainda carecia de elementos mais sólidos, visto que as próprias teorias correntes até o final do século eram fortemente especulativas [...]. Nesse sentido, os primeiros passos para o estabelecimento de uma ciência eugênica se constituíram enquanto um conjunto de práticas envolvendo os trabalhos de Francis Galton e a influência que começou a exercer sobre um grupo de indivíduos – conhecidos como biometristas – preocupados em encontrar regularidades estatísticas que pudessem indicar a prevalência de certas características em um dado conjunto populacional.
Mesmo com a dificuldade de compreensão do mecanismo de transmissão das características, Galton, quando cunhou o termo eugenia, tinha pelo menos uma certeza: que os dados que comprovariam a sua ciência surgiriam do trabalho de registro e análise estatística das características que os progenitores e os seus ancestrais transmitiram à prole [...]. Para ele, ademais, a transmissão das características não se limitava apenas aos aspectos físicos, mas também a habilidades e talentos intelectuais [...].
No final do século XIX, superadas, pelo menos no cenário intelectual inglês, as fortes resistências à teoria da evolução pela seleção natural, as atenções voltaram-se para a compreensão do processo de transmissão de características dos progenitores à prole. Dado que duas conseqüências derivavam da aceitação da teoria da evolução darwiniana: primeiro, que a seleção deveria atuar sobre um conjunto de variedades de características individuais, selecionando uma parte delas; segundo, que, ao selecionar certas características, elas deveriam ser transmitidas, por intermédio da reprodução, a uma nova geração de indivíduos [...]. Portanto, decidir-se sobre a origem da variação intraespecífica foi a primeira exigência posta para o desenvolvimento de uma ciência eugênica. Pois, caso a variação tivesse origem nas condições ambientais, como postulava a teoria da herança dos caracteres adquiridos, então boa alimentação, melhores condições de higiene, educação e melhorias nas condições existenciais seriam suficientes para uma melhora geral nas características humanas, fossem elas orgânicas ou intelectuais.
Todavia, transformações atestadas por dados que vinham de registros naturais sobre a variação das espécies e de descobertas fósseis indicavam que algumas variações mantiveram-se ao longo do tempo enquanto outras foram extintas, gerando com isso duas questões distintas: a primeira, a necessidade de explicar o fenômeno da diversidade de espécies observadas na natureza; a segunda, como as características de uma dada espécie seriam transmitidas dos progenitores à prole [...].
Galton aceitava plenamente a teoria da seleção natural para dar conta da primeira questão e para a segunda acreditava que a teoria da pangênese darwiniana poderia ser promissora; pois, ao postular a existência de unidades responsáveis pela herança – as gêmulas –, Galton percebeu que a teoria da herança de Darwin poderia receber tratamento laboratorial e cálculo matemático/estatístico, uma vez que indicava a existência de unidades materiais passíveis de verificação empírica.
Duas outras contribuições foram fundamentais para a elaboração da teoria da herança galtoniana. Primeiramente, o pensamento de Herbert Spencer (1820-1903) contribuiu com as noções de existência de um processo evolutivo teleológico, no sentido de uma direção progressiva a que tudo no universo estaria submetido, e de existência de unidades fisiológicas que registrariam as modificações, transmitindo-as às próximas gerações [...]. E, depois, o trabalho de Augusto Weismann (1834-1914), ao diferenciar as células somáticas das células germinativas, contribuiu no sentido de reservar somente aos processos biológicos a possibilidade de transmissão de características. As mudanças ocorridas no soma (corpo) e não incorporadas ao material genético não poderiam ser transmitidas à nova geração [...].
Assim, o que pretendemos indicar neste texto é que Francis Galton propôs a sua teoria da herança em estreita sintonia com o desenvolvimento do debate biológico em curso, no sentido de oferecer um procedimento objetivo que, pela utilização de instrumental laboratorial e matemático/estatístico, pudesse identificar as unidades responsáveis por determinadas características e criar procedimentos de controle reprodutivo selecionadores das características que representariam o melhoramento genético do ser humano.
Fonte: Del Cont, V. 2008. Francis Galton: eugenia e hereditariedade. Scientiae Studia 6: 201-18.
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