A Arca de Lula contra o Dragão da Maldade
F. Ponce de León
1.
A senadora Simone Tebet (MDB/MS) é comumente vista como uma parlamentar de centro ou centro-direita. De extrema-direita ela nunca foi. Embora tenha defendido (durante a campanha) ideias econômicas que eu condeno, parece ser uma pessoa agradável. Daquelas com quem a gente aqui na roça passaria a tarde inteira conversando – falando da vida, contando uns casos, comendo pastel de angu e bebendo uma cachaça. Tenho mais ou menos a mesma impressão em relação ao Geraldo Alckmin (PSB/SP).
2.
Um parêntesis. Há muita gente antipática e desagradável em todo canto, inclusive na vida pública (parlamentares, cantores, atores, futebolistas etc.). Seria impossível passar uma tarde inteira com esses chatos de galocha. E isso não tem a ver só com o espectro político. Conheço gente de esquerda, por exemplo, com quem seria difícil manter uma conversa por mais de três minutos.
3.
O bolsonarismo não é de direita; é de extrema-direita. Também não se trata de um movimento conservador, muito menos liberal; trata-se de um movimento reacionário, inerentemente destrutivo. Credos de extrema-direita se caracterizam por defender a destruição física dos adversários. (Neste sentido, aliás, não custa repetir: não há extrema-esquerda no país.)
4.
Lula, a julgar pelas pautas que defende, bem poderia ser classificado como um político de centro ou centro-esquerda. Para alguém que, no início da vida pública, se orgulhava de ser apolítico, como será que ele desenvolveu a sensibilidade e a lucidez que hoje o caracterizam? Para começar a entender essa história, devemos lembrar que Lula sempre conviveu com muita gente, incluindo gente inspiradora e de esquerda. (Poderia citar aqui alguns nomes admiráveis, mas vou evitar. Basta dizer que muitos desses anjos protetores ainda estão vivos e na luta.) A convivência, ao que tudo indica, fez bem ao presidente e também aos ativistas.
5.
Conversas e interações presenciais são fundamentais na vida em sociedade. Eis, portanto, o meu argumento: Conflitos e disputas políticas permanentes podem às vezes endurecer a pele e o coração, mas também afiam o discurso e alimentam o cérebro com argumentos. E eu diria mais: Diria também que essas interações, notadamente em um contexto de disputas internas permanentes e democráticas, funcionariam como sucessivas rodadas de seleção cultural, processo por meio do qual alguns argumentos vão sendo aperfeiçoados, enquanto outros vão sendo descartados [1]. Foi como um participante privilegiado desse tipo de processo que o presidente se converteu no grande contador de histórias e no exímio negociador que ele é hoje.
6.
O Partido dos Trabalhadores abriga tendências de esquerda, mas o partido como um todo já não é mais de esquerda. (Isso não é de hoje. E não foi um acidente. As mudanças no programa e na orientação do partido ocorreram há mais de 10 anos.) O PT é um partido grande, e é bom que o seja, mas o xis do problema é o seguinte: A política brasileira não está sendo pautada pela esquerda, pois a esquerda tão tem força para isso. Compreendo a situação, mas, sinceramente, lamento que seja assim. Seria bom e saudável para a nossa frágil democracia que nós tivéssemos uma esquerda mais afiada e mais sólida. (Neste ponto, minha receita seria a seguinte: menos stalinismo e mais democracia socialista [2].)
7.
Veja o rumo que as coisas devem tomar no próximo governo: Boa parte dos pragmáticos e dos espertalhões que embarcaram na Arca de Lula (incluindo liberais e conservadores de centro e de centro-direita) vai fazer de tudo para tomar o leme e adernar o barco. (A rigor, tem gente que já está tentando fazer isso. Veja, por exemplo, as notícias plantadas sobre a composição do ministério que estão a pipocar todos os dias na imprensa.)
Em suma, olhe em volta e veja aonde nós viemos parar, 37 anos após os primórdios da Nova República. Com o golpe de 2016 e os desastrosos seis anos que se seguiram, acho que muita coisa no país recuou (real ou simbolicamente) ao nível de 1985. Não foi a primeira vez que isso aconteceu em nossa história, o que me faz levantar a seguinte pergunta: Será que a sociedade brasileira, além de estar condenada a viver em um acampamento extrativista, estaria também condenada a empurrar morro acima, e indefinidamente, uma mesma e única rocha?
8.
Não sou lulista nem sou petista. O que vejo e sinto é apenas o seguinte: (1) Não há democracia fora do universo político (a vida política, claro, não se resume aos partidos); e (2) O PT, entre os partidos que de fato importam, é o único que tem uma proposta de país minimamente sólida e racional. Há partidos que sequer lidam seriamente com essa pauta. Além disso, entre os que lidam, há aqueles que pensam apenas e tão somente na manutenção desse grande acampamento de extrativismo que nos caracteriza.
9.
Pois é. No fim das contas, duas palavras-chaves que resumem bem a história do país são acampamento e extrativismo. Era assim em Ouro Preto e Diamantina, durante os séculos 17 e 18. E é assim hoje, seja em Roraima, Carajás ou Mato Grosso. Pessoalmente, acho inaceitável viver em uma das maiores economias do mundo e ver tanta gente passando fome e sentido frio, tanto esgoto a céu aberto, tanta sonegação fiscal, tanta ferrovia abandonada, tanta estrada esburacada etc. No meu campo de atuação, por exemplo, não me conformo com a baixa qualidade do nosso mercado editorial. Assim como não me conformo com a tibieza das nossas universidades. (Estou a falar de universidades públicas, pois as instituições particulares, com raras e notórias exceções, pouco ou nada valem. São apenas quitandas que vendem diplomas, pagam mal aos seus professores e pouco ou nada ensinam.)
10.
Os problemas do país, claro, não serão inteiramente corrigidos nos próximos quatro anos. Mas poderemos brigar para que haja avanços e melhorias. O que não seria possível caso o Dragão da Maldade saísse vencedor. E o motivo não é difícil de entender: A proposta da extrema-direita é exclusivamente parasitária e destrutiva.
Em resumo, eu diria o seguinte: A Arca de Lula conseguiu encurralar o Dragão da Maldade. Resta trabalhar duro para imobilizá-lo e, quem sabe, neutralizá-lo de vez.
*
Nota.
[1] O termo é usado aqui em razão das semelhanças que vejo com o processo de seleção natural. Para uma introdução ao estudo deste último processo, ver O que é darwinismo (Edição do Autor, 2019), de F. A. P. L. Costa.
[2] Para uma breve discussão sobre o assunto, ver, e.g., Trotski: Um estudo da dinâmica de seu pensamento (Zahar, 1980), de Ernest Mandel.
* * *
2 Comentários:
Quanta bosta e quanto pedantismo acaciano.
Em geral, quem acusa um texto de "pedantismo"[não tem capacidade intelectual de compreendê-lo e de apreciar uma boa análise.
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