Contra o senso comum: Usando a ciência e a Receita do Fogo Fantasma para cozinhar e economizar energia
1. INTRODUÇÃO.
Caro leitor, permita-me uma advertência inicial: Embora este artigo tenha sido escrito pensando em brasileiros que cozinham em casa, o uso racional das fontes de energia é um assunto de interesse público em todos os países do mundo. Minimizar o consumo de energia (gás, eletricidade etc.) toca de imediato no bolso de quem vive com um orçamento apertado, assim como deveria tocar na consciência e, sobretudo, nas decisões políticas dos capitães de indústria que se movimentam contra as iniciativas que visam reduzir a queima e o desperdício de combustíveis fósseis.
Na hipótese de que o leitor vá prosseguir a leitura, seja-me permitida uma provocação: Tendo passado os olhos nos parágrafos a seguir, compare as minhas sugestões com a sua experiência pessoal, reflita e, por fim, pondere se o roteiro que ora proponho lhe parece factível. A julgar pelas pesquisas preliminares que fiz, estou particularmente impressionado com o fato de que o tempo de cozimento adotado por muitos brasileiros (com a panela sobre fogo aceso, diga-se) é absurda e desnecessariamente prolongado [1].
2. MATERIAL E MODO DE FAZER.
Eis a receita.
Material necessário: feijão (500 g), água (~2,5 L ou o necessário para cobrir o feijão e ocupar 10 dos 14 cm de altura do volume interno da panela – ver a imagem que acompanha este artigo) e uma fonte de calor (fogão a gás, no caso). Além, claro, de uma panela de pressão (a capacidade do modelo que tenho aqui é de ~4,2 L) [2].
Modo de fazer. São quatro etapas, a saber:
(1) Catar o feijão. (Para quem compra feijão empacotado: Pedras, torrões de terra e grãos mofados não são exatamente raros.) Despejar os grãos selecionados em uma vasilha. Lavar e escorrer. Cobrir os grãos com água. Manter a vasilha (coberta, de preferência) em um lugar sombreado por um período de 8-12 horas. Vistorie e, se necessário, adicione água para manter os grãos submersos [3].
(2a) Concluído o período de molho, escorra a água e despeje os grãos na panela. Cubra o feijão com uma água nova, observando as recomendações do fabricante. (As instruções, salvo melhor juízo, recomendam nunca encher até a tampa. A rigor, deve-se manter uma distância mínima entre a superfície da água e a tampa. No meu caso, as medidas foram citadas anteriormente.) Leve a panela ao fogo.
(2b) Coloque a tampa sobre a panela, mas não tranque. O truque aqui é simples, mas de duplo efeito: Leve a panela ao fogo, mas com a tampa ainda sem trancar. Aguarde alguns minutos. (Como a tampa não está trancada, a água tende a ferver mais depressa – i.e., a uma temperatura próxima de 100 °C.) Pouco antes de a água começar a ferver, haverá a formação de uma espuma sobrenadante; remova a espuma com uma colher; feche e agora tranque a tampa.
(3) Um pouco mais e a válvula começará a se movimentar. Mais alguns minutos e a válvula começará a expelir vapor (apitar); marque o tempo; aguarde 1-3 minutos e desligue. (O tempo exato de espera pode variar de acordo com o tipo ou a idade do feijão. Faça os ajustes necessários, para mais ou para menos, de acordo com as suas preferências. Eu mesmo, porém, já estou acostumado a obter um feijão cozido e extremamente macio com apenas 1 minuto de válvula apitando [4].)
Nos primeiros experimentos, eu aguardava 4-5 minutos de apito. O resultado foi sempre o mesmo: Um grão cozido e macio – para todos os tipos de feijão, Carioca, Preto, Vermelho e Manteiga. (Obtive o mesmo resultado com o grão-de-bico.)
Refiz as contas e me dei conta de que 4-5 minutos ainda era tempo demais. Reduzi para 1 minuto. Funcionou. E funcionou em todos os casos que já consegui testar (feijão Carioca e grão-de-bico; ainda vou testar com o Vermelho, que tem fama por aqui de ser um feijão mais duro) [5].
(4) Depois que tiver desligado o fogo, mantenha a panela trancada até que ela esteja completamente fria [6]. O que seguramente irá demorar algumas horas, mesmo no inverno. Feito isso, destranque, abra e confira. Se julgar que o feijão está suficientemente macio, pronto, agora é só temperar [7].
3. CODA.
Como eu disse antes, a economia proposta aqui é de gás, não de tempo. Pensando nisso e tentando tornar o roteiro um pouco mais óbvio e exequível, deixo aqui uma sugestão de cronograma: (1) Coloque os grãos de molho na manhã do dia 1 (digamos, às 8h00); (2) Cozinhe o feijão na noite do dia 1 (por volta de 20h00); (3) Tendo desligado a chama, deixe a panela dormir no fogão do dia 1 para o dia 2; e (4) No dia 2, destranque, abra e confira o resultado [8].
Então, caro leitor, o que lhe parece a Receita do Fogo Fantasma [9]?
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Notas.
[*] Trechos deste artigo integram o livro A força do conhecimento & outro ensaios: Um convite à ciência (em processo de finalização). Para informações sobre como adquirir os livros do autor – Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2ª ed., 2014), Poesia contra a guerra (2015), O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (2017) e O que é darwinismo (2019) –, ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir algum volume particular ou para mais detalhes, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros, ver aqui.
[1] Não custa ressaltar: A economia proposta aqui é de gás, não de tempo.
[2] A necessidade faz o sapo pular. Consumidor habitual de feijão e morando atualmente sozinho, tive de superar uma preocupação (e um trauma da minha adolescência): panelas de pressão podem explodir. Diferentemente das panelas comuns, a panela de pressão é capaz de reter o vapor que é produzido dentro dela (temporariamente, claro). É dotada para isso de uma válvula regulatória. O segredo da panela de pressão é que ela faz com que a temperatura de ebulição da água aumente, saltando dos tradicionais 100 °C para algo próximo de 120 °C. Qual o efeito prático disso? Acelerar o cozimento. Veja: Quanto mais alta a temperatura de ebulição da água, mais rápido será o cozimento. (O contrário é verdadeiro: Quanto mais baixa a pressão, mais baixa será a temperatura de ebulição e, por conseguinte, mais demorado será o cozimento. Quem vive em localidades acima de 3 mil m de altitude – não temos isso no país – sabe bem do que eu estou falando aqui. Esta foi, aliás, uma das motivações por trás da invenção e do desenvolvimento da panela de pressão: cozinhar em altitudes elevadas. Aliada, claro, ao desejo de reduzir o tempo de cozimento.) Quando a pressão interna da panela atinge o seu valor máximo, a válvula começa a apitar. A partir daí, enquanto o fogo estiver aceso, a válvula seguirá expelindo jatos de vapor, de tal modo que a pressão e a temperatura internas permanecerão inalteradas. Uma implicação prática disso é que, assim que a válvula começa a apitar, nós devemos colocar a chama no mínimo. Manter a chama no máximo implicaria apenas e tão somente em desperdício de gás, visto que a pressão e a temperatura lá dentro já estão no máximo.
[3] Leguminosas (feijão, grão-de-bico etc.) e cereais (arroz etc.) são ricos em fitatos (ácido fítico). Deixar o feijão de molho, a julgar pelos poucos artigos que consultei, já reduz muito a concentração dessa substância – 4 horas de molho já resulta em uma redução expressiva, mas 12 horas tem um impacto ainda mais expressivo. (Diminuir a concentração de fitatos aumenta a digestibilidade e o valor nutricional do alimento.) Mas não zera. De fato, a espuma que se forma por cima da água no início do cozimento tem a ver também com essa substância.
[4] O tempo médio de espera, levando em conta as consultas que fiz, incluindo aí quase 20 vídeos que assisti no YouTube (todos em português e quase todos com dicas de cozimento equivocadas ou até mesmo esdrúxulas), é bem superior: 20 minutos de válvula apitando, chegando a 40 minutos em casos extremos! Aguardar esse tempo todo (10-40 minutos) é puro desperdício de gás. Além, claro, de aumentar muito as chances de algum acidente (ver aqui).
[5] Inúmeras variedades de feijão (Phaseolus vulgaris L.) são consumidas diariamente em muitos países. A presença de feijão na mesa dos brasileiros, sobretudo na hora do almoço, é um dos nossos hábitos alimentares mais bem estabelecidos.
[6] Não tem mágica: O calor que vai terminar de cozinhar o feijão – o fogo fantasma – já está dentro da panela. Nós só precisamos aguardar. Forçar o esfriamento para abrir logo a panela, como muitas vezes acontece, é um duplo desperdício: de água e, sobretudo, de calor (e, claro, de gás).
[7] Vegetais (abóbora etc.) ou peças de carne (bacon, linguiça etc.) podem ser colocadas para cozinhar junto com o feijão, sem qualquer problema.
[8] Não se preocupe: O interior da panela foi esterilizado e o feijão, tendo dormido fora da geladeira, não corre nenhum risco de estragar.
[9] Caso o leitor de fato se disponha a testar a receita, gostaria muito de conhecer os resultados obtidos. (Meu endereço de correio-e aparece no início destas notas.) Principalmente na hipótese de que os resultados venham contradizer a minha previsão – 1 minuto de válvula apitando sinaliza tempo mais do que suficiente para cozinhar todo e qualquer tipo de feijão, sobretudo se este foi previamente colocado de molho em água.
* * *
2 Comentários:
Adorei a receita. Costumo deixar mais tempo mas vou testar com 1 minuto. Valeu por suas dicas.
Felipe, amei saber que você cozinha! (risos)
Brincadeiras à parte, gostei muito da receita! Vou testá-la com toda a certeza, da próxima vez que eu cozinhar feijão, irei seguir o roteiro deste seu texto! Darei notícias! (nota: cozinho pouco feijão. Portanto, assim que eu testar, farei comentários posteriormente. Parabéns por ocupar-se com o meio ambiente ao escolher economizar os combustíveis fósseis do planeta. Se todos começarem a fazer isso, a geração futura testemunhará este notável esforço de ancestralidade consciente não ter sido em vão!
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