07 julho 2023

Afogando em números. II. A constante solar


Felipe A. P. L. Costa [*].

[A] natureza como um todo possui um estoque de energia que não pode de forma alguma ser aumentado ou reduzido.
– Hermann von Helmholtz (1821-1894).

1. FONTES DE ENERGIA.

Todos os seres vivos – incluindo, claro, os seres humanos – dependem de fontes externas de energia [1]. Na imensa maioria dos casos, essa fonte é a energia que nos chega com os raios solares.

A quantidade diária de energia que é liberada pelo Sol é gigantesca [2]. Em termos relativos, porém, trata-se de uma fração insignificante. Veja: em relação ao total armazenado no interior da estrela, a quantidade liberada equivaleria (em termos comparativos) à décima milésima parte do que é liberado pelo corpo humano (na forma de calor) em um mesmo intervalo de tempo. Trocando em miúdos, nosso corpo está a perder energia a um ritmo 10 mil vezes mais rápido que o Sol [3].

Outro aspecto a ser destacado seria o seguinte: de toda a energia radiante que é emitida continuamente pelo Sol, apenas uma fração diminuta é interceptada pela Terra. Em termos absolutos, porém, trata-se de uma quantidade bem grande, a ponto de manter o nosso planeta nutrido e aquecido [4].

2. CONSTANTE SOLAR.

Cabe atentar ainda para o seguinte: em média, de toda a energia solar que é interceptada pela Terra (leia-se: de toda a energia que incide no topo da atmosfera), apenas a metade (ora mais, ora menos) atinge a superfície do planeta. Visto que a outra metade é absorvida pela atmosfera ou é prontamente refletida de volta para o espaço.

A quantidade de radiação solar que atinge o topo da atmosfera é chamada de radiação (ou irradiância) solar total (RST ou TSI, na sigla em inglês). Fala-se também em constante solar, embora a quantidade em questão não seja exatamente uma constante. O valor anual médio tem oscilado entre 1.361 e 1.365 W m^–2 [5].

Nas palavras de Flohn (1968, p. 10; tradução livre) [6]:

Como a Terra é uma esfera em rotação, a energia recebida – que tem sido chamada pouco acertadamente de constante solar – se reparte sobre toda a superfície da esfera: 4πr^2 (r = raio terrestre), que é quatro vezes maior que a sua seção meridiana (πr^2). No transcurso de um dia, cada cm^2 recebe 0,5 cal/min – i.e., 720 cal em 24 horas. Uma unidade muito prática para calcular a radiação recebida por unidade de superfície é o langley: 1 cal por cm^2. A insolação média de uma superfície horizontal no limite superior da atmosfera é, portanto de 720 langley por dia (Ly/d), ou 349 W/m^2. A fórmula resulta em 1 Ly/min = 697,35 W/cm^2.

3. UM POUCO DE GEOMETRIA.

Para fins de ilustração e esclarecimento, suponha por um instante que a radiação que é interceptada pela Terra atravessa antes uma figura imaginária (digamos, um círculo de raio R, sendo R o raio da Terra) disposta perpendicularmente em relação aos raios solares e colocada imediatamente acima do topo da atmosfera (ver a figura que acompanha este artigo).

O xis da questão é: a quantidade de radiação (por unidade de área) que atravessa o círculo ao longo de um período de tempo qualquer é maior que a quantidade de radiação que incide (por unidade de área) sobre a superfície externa da atmosfera. Não há mágica, não há truque. Nenhuma energia é perdida. Há apenas uma diluição à medida que saímos do plano do círculo e vamos para a superfície do globo. Vejamos.

Enquanto a área do nosso círculo imaginário é igual a πR^2, a área externa da atmosfera é igual a 4πR^2, lembrando que R, nas duas fórmulas, é o raio da Terra [7]. O globo terrestre, portanto, tem uma área quatro vezes maior que o círculo.

4. CODA.

Trocando em miúdos, a radiação solar que atravessa o círculo é quatro vezes mais densa que a radiação que incide sobre a superfície externa da atmosfera. O impacto de tal diluição implica tão somente no seguinte: o valor anual médio da radiação que é interceptada pela atmosfera oscila entre 340,25 (= 1.361 / 4) e 341,25 (= 1.365 / 4) W m^–2.

No que segue, por simplificação, vamos fixar esse valor em 340 W m^–2. Como veremos adiante, apenas uma parte disso irá chegar à superfície do planeta.

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NOTAS.

[*] Artigo extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (em processo de finalização). Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os livros do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir algum volume específico ou para mais informações, faça contato com o autor pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros, ver aqui.

[1] Externas em relação ao próprio corpo. Vale ainda destacar que há exceções à segunda afirmativa. Por exemplo, certas comunidades microbianas encontradas a grandes profundidades (e.g., no solo ou no assoalho oceânico) dependem tão somente de fontes locais de energia geotérmica; independem, portanto, de matéria orgânica oriunda da superfície (para detalhes, ver Stevens 1997).

[2] A radiação liberada tem origem no núcleo da estrela. As reações termonucleares que estão a ocorrer ali são relativamente lentas, pois envolvem inúmeros ciclos de absorção e emissão. A rigor, a energia que nos chega hoje levou dezenas de milhões de anos desde que foi emanada do núcleo da estrela. Tendo alcançado a fotosfera, a região mais externa, a energia finalmente é liberada e irradia para o espaço. Para os nossos propósitos, a dinâmica solar pode ser arranjada em três regiões: uma zona de convecção interna, a superfície (fotosfera) e a atmosfera solar. Nas entranhas do Sol, a temperatura e a pressão atingem valores elevadíssimos (1,5 × 10^7 ºC e 109 atm, respectivamente). Acima do núcleo, porém, os valores despencam. Na fotosfera, a temperatura é de ~6 × 10^3 ºC. Mas torna a subir na atmosfera, chegando a ~106 ºC na camada mais externa, a coroa solar – ver Comins & Kaufmann (2010).

Ainda sobre irradiação, eis o comentário de Jewett & Serway (2011, p. 150; grifos no original):

A taxa com a qual um corpo irradia energia é proporcional à quarta potência de sua temperatura absoluta. Conhecida [como] a Lei de Stefan, esse comportamento é expresso em forma de equação como: P = σAeT^4, onde P é a potência em watts de ondas eletromagnéticas irradiadas da superfície do corpo; σ, uma constante igual a 5,6696 × 10–8 W/m^2 K^4; A, a área da superfície do corpo em metros quadrados; e, a emissividade; e T, a temperatura da superfície em kelvins.

O valor de e varia entre 0 e 1. Nos chamados corpos negros, como seria o caso do Sol, e = 1, de modo que a equação acima se reduz a P = σAT^4.

[3] A emissão de radiação na forma de calor é uma propriedade de todo e qualquer objeto cuja temperatura esteja acima do zero absoluto (0 K ou –273,16 ºC) – ver Nussenzveig (2014).

[4] A temperatura média do planeta gira hoje em torno de 15 ºC. (Essa média, como é bem sabido, está a escalar. É preocupante. Em 2022, por exemplo, a média anual bateu na casa dos 16 ºC; dias atrás, foi registrado um recorde histórico acima de 17 ºC.) Na ausência do Sol, a temperatura média do planeta despencaria para –237 ºC (ou 36 K). Para um balanço detalhado das múltiplas fontes de energia da Terra, ver Kren et al. (2017).

[5] Neste livro, para fins de cálculo, adoto o valor mais baixo, 1.361 W m^–2. Além de W m^–2, diferentes unidades de potência ou trabalho costumam ser usadas para expressar a constante solar, como J m^–2 s^–1, btu pé^–1 h^–1 e hp jarda^–1 – ver, e.g., Hinrichs et al. (2011) e Jewett & Serway (2011). A RST é monitorada por satélites desde o final da década de 1960. Para detalhes e referências, ver Kopp & Lean (2011).

[6] Eis as palavras de uma referência mais recente (Barry & Chorley 2013, p. 41): “Medições feitas por satélites desde 1980 indicam um valor de cerca de 1.366 W m^–2, com uma incerteza absoluta de aproximadamente ± 2 W m^–2.”

[7] A atmosfera recobre todo o globo terrestre de modo mais ou menos homogêneo, ainda que a sua estrutura vertical possa variar com a latitude. Em latitudes tropicais, por exemplo, as camadas de ar quente tendem a atingir altitudes mais altas que em latitudes temperadas – ver Barry & Chorley (2013). No fim das contas, porém, podemos dizer que há duas esferas mais ou menos concêntricas: o globo terrestre nu e o globo terrestre envolto por uma manta de ar.

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REFERÊNCIAS CITADAS.

++ Barry, RG & Chorley, RJ. 2013 [2010]. Atmosfera, tempo e clima, 9ª ed. P Alegre, Artmed.
++ Comins, NF & Kaufmann, WJ, III. 2010 [2008]. Descobrindo o Universo, 8ª ed. P Alegre, Bookman.
++ Flohn, H. 1968. Clima y tempo. Madri, Guadarrama.
++ Hinrichs, RA & mais 2. 2011 [2006]. Energia e meio ambiente. SP, Cengage.
++ Jewett, JW, Jr & Serway, RA. 2011 [2010]. Física para cientistas e engenheiros, v. 2, 8ª ed. SP, Cengage.
++ Kopp, G & Lean, JL. 2011. A new, lower value of total solar irradiance: Evidence and climate significance. Geophysical Research Letters 38: L01706, doi:10.1029/2010GL045777.
++ Kren, AC; Pilewskie, P & Coddington, O. 2017. Where does Earth’s atmosphere get its energy? Journal of Space Weather and Space Climate 7: A10.
++ Nussenzveig, HM. 2014. Curso de física básica, v. 2, 5ª ed. SP, Blucher.
++ Stevens T. 1997. Lithoautotrophy in the subsurface. FEMS Microbiology Reviews 20: 327-37.

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