28 setembro 2023

Estamos a erguer um país ou tão somente um grande acampamento extrativista?

F. Ponce de León.

1.

Se o governo atual está aquém das nossas melhores expectativas – e acho que há bons motivos para dizer que sim (veja, por exemplo, os lobistas que continuam a saltitar pelos corredores do MEC) –, os dois governos anteriores foram o suprassumo da anarquia, da pilhagem e, claro, da corrupção. Para fins de registro, citaria aqui dois exemplos que julgo emblemáticos.

2.

Primeiro. Uma das primeiras iniciativas legislativas durante o governo Temer foi uma proposta de lei (apresentada, claro, por um parlamentar golpista) que, se bem me lembro, facultava aos plantadores de cana e afins a prerrogativa de remunerar os seus ‘colaboradores’ com itens como alimentação e abrigo. Seria uma espécie de supressão do salário. Mas não em razão do advento de algum modelo mais eficiente de controle social sobre o uso da terra. Não, era um retrocesso. Estaríamos a trocar uma instituição capitalista por uma relação do tipo feudal. Uma aberração. (Patrocinada, entre outros, pelo nosso querido agronegócio exportador.)

3.

Segundo exemplo. Já durante o governo do inominável, citaria a criminosa proposta daquele ex-ministro anseriforme. Estou a me referir à proposta que, entre outras coisas, visava atenuar as barbeiragens comumente associadas às ações policiais mais violentas. O projeto autorizava o bangue-bangue: todas ou quase todas as mortes de civis ocorridas em operações policiais seriam desculpáveis. Não era só uma afronta à população civil, era também uma afronta aos próprios policiais. O estado continuaria a não oferecer treinamento e condições dignas de trabalho, mas saía pela tangente, eximindo-se de culpa ou responsabilidade: “Virem-se. Defendam-se. Se for o caso, matem os suspeitos. Ninguém será punido.”

4.

O policial que trabalha nas ruas talvez possa ser descrito como um ‘operário da lei com uma arma na cintura’. Trata-se de um profissional mal pago e, sobretudo, muito mal treinado. Um peão colocado nas ruas meio que de qualquer jeito. No início da carreira, o sujeito pode até trazer consigo algum idealismo juvenil. Após alguns meses na academia de polícia, muitos desses jovens devem sair de lá trazendo agora consigo também uma sensação de insegurança. E de medo. Muito medo. Todavia, após ter participado de uma ou duas operações violentas, o jovem policial dificilmente manterá consigo algum traço de idealismo. E aí, batizado, poderá desenvolver laços de afetividade e, sobretudo, de reconhecimento mútuo com os colegas veteranos. (O remorso que alguns policiais sentem pelos crimes cometidos em serviço tem sido explorado por seitas religiosas oportunistas. Ainda assim, no entanto, a taxa de suicídio entre os policiais segue anormalmente elevada.) Como em outras corporações, cria-se um forte espírito de corpo – o risco de morte e a exposição constante à chantagem tendem a fortalecer os elos entre eles. É urgente sanitizar as polícias militares. O mais importante, porém, é valorizar a carreira e, sobretudo, melhorar o treinamento e oferecer condições dignas de trabalho.

5.

A rigor, desconheço uma única atividade profissional que não careça de sanitização e de melhorias urgentes e radicais. Um exemplo com o qual convivo há mais de quatro décadas é o magistério. É embaraçoso ver, por exemplo, quantos professores universitários (aposentados ou em atividade) não reúnem (ou não reuniam) as mínimas condições para exercer a atividade. E o pior: não são poucos os docentes que odeiam (ou odiavam) a docência e o estudo. (Ao contrário do que alguns ideólogos da direita gostam de alardear, além de tecnicamente fraco, a maior parcela do magistério universitário sempre foi dominada por gente politicamente alienada e de direita.)

6.

No fim das contas, os problemas sociais do país talvez possam ser dispostos em duas prateleiras, a dos problemas estruturais e a dos problemas conjunturais. Na hipótese de que consiga repetir as duas experiências anteriores, o governo Lula 3 talvez consiga nos livrar de alguns dos problemas conjunturais mais graves e urgentes. Incluindo problemas que são profundamente vexatórios para o país e, claro, para qualquer indivíduo minimamente decente, como a fome e a miséria. (Veja, por exemplo, o que aconteceu com a população de rua nas grandes cidades após o golpe contra a Dilma.) Digo que a fome e a miséria são vexatórios porque são problemas relativamente fáceis e baratos de resolver.

7.

Em compensação, será muito difícil para o governo – a julgar pela composição da frente ampla que lhe dá sustentação e, sobretudo, pela desorganização das forças populares – lidar com problemas que nos assombram desde sempre e que têm a ver com os fundamentos históricos da nossa economia, notadamente o extrativismo (mineral e vegetal). Assim é que medidas adotadas há quase dois séculos pelo capitalismo estadunidense, como a reforma agrária, ainda continuam no papel por aqui. E veja ainda o caso da Petrobras: continua preocupada apenas e tão somente em emporcalhar a atmosfera e em distribuir dividendos para os seus acionistas.

8.

É difícil construir uma sociedade civilizada quando a base econômica disponível é o extrativismo. Somos extrativistas há mais de 500 anos e eu temo que, por muito tempo ainda, nós vamos continuar convivendo com os problemas daí advindos. Problemas do tipo: (i) No meio patronal, seguirá reinando a malandragem (sonegação e evasão fiscal, grilagem de terras etc.); (ii) Nos setores médios da sociedade, seguirá reinando o cinismo (exibicionismo, ignorância diplomada, etc.); e (iii) Nos setores mais explorados, seguirá reinando o desespero (fanatismo religioso, prostituição etc.).

9.

Gostaria de estar equivocado, por ora, no entanto, continuo a defender a tese de que não estamos a erguer um país, mas apenas e tão somente um grande acampamento extrativista.

* * *

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