O sionismo pariu um estado racista, paranoico, cínico e beligerante
Felipe A. P. L. Costa [*].
1. JORNALISMO DA FALSIFICAÇÃO.
Não são poucos os jornalistas profissionais que agem de modo criminoso. No momento, mais especificamente, estou a pensar nas atrocidades que alguns deles estão a divulgar a respeito do que se passa na Faixa de Gaza (ver aqui, aqui e aqui).
Por trás do que é dito a respeito da ação israelense em Gaza, há o mundo dos negócios. De sorte que os fatos não podem vir a público em estado bruto. É necessário amenizá-los; é necessário dourar a pílula; no fim das contas, é necessário turvar as coisas e confundir a opinião pública.
No plano ideológico, muitas das barbeiragens que a imprensa brasileira cria ou deixa passar a respeito dos massacres ora em curso na Palestina estão assentadas na ideia de que sionismo e semitismo significam a mesma coisa. E isso simplesmente não é verdade – a rigor, há um abismo entre os dois termos.
A confusão é antiga, mas continua a ser explorada por muita gente. No cômputo final, ao menos dois fatores contribuem para a falta de discernimento por parte do público, a saber: (1) O trabalho de propaganda promovido diuturnamente por grupos sionistas mal-intencionados; e (2) O baixo apreço que muitos de nós temos pelo senso crítico e pelo rigor analítico. (Exemplos de como essas duas virtudes são capazes de iluminar a discussão podem ser vistos aqui e aqui.)
Neste artigo, tento distinguir sionismo e semitismo. Falo ainda sobre antissemitismo. E falo sobre as práticas de purificação racial que estão a ser defendidas por autoridades israelenses.
2. O QUE É SEMITISMO?
A palavra semitismo deriva de semita, termo que Ferreira (2009, p. 1826; grafia original) caracteriza da seguinte maneira:
semita. [Do antr. Sem, de uma personagem bíblica + –ita.] 1. Indivíduo dos semitas, família etnográfica e linguística, originária da Ásia ocidental, e que compreende os hebreus, os assírios, os aramaicos, os fenícios, os árabes.
Como se vê, o termo abrange povos e tradições culturais variadas. Dito de outro modo, quando alguém se refere ao semitismo está a fazer alusão a alguma coisa que é típica ou pode estar presente na cultura de vários povos. (Somados, os povos semitas reúnem hoje um efetivo populacional que gira em torno de 500 milhões de indivíduos, o equivalente a pouco mais de 6% da população mundial.)
3. O QUE É SIONISMO?
O termo sionismo, por sua vez, pode ser definido da seguinte maneira (Ferreira 2009, p. 1855; grafia original):
sionismo. [Do top. Sion, denominação judaica de Jerusalém, onde há um monte com esse nome, + –ismo.] 2. Movimento político e religioso judaico iniciado no séc. XIX, que visava ao restabelecimento, na Palestina, de um Estado judaico, e que se tornou vitorioso em maio de 1948, quando foi proclamado o Estado de Israel.
Como se vê, diferentemente de semita, um termo guarda-chuva que designa mais de 6% da população mundial, o termo sionista designa uma afiliação ideológica, uma corrente política.
A relação possível entre os dois termos poderia seguir pelo seguinte caminho: A partir de meados do século XIX, alguns semitas (judeus, em particular) passaram a defender a criação de um estado nacional que pudesse reunir e abrigar os hebreus (judeus) [1]. Um estado soberano onde a vida social seria definida e regulada pelos princípios do judaísmo ou, mais especificamente, da religião judaica.
Cabe aqui esclarecer o significado de judaísmo. Nas palavras de Ferreira (2009, p. 1160):
judaísmo. [Do lat. tard. judaismu.] 1. Ambiente social, cultural, político e religioso do povo hebreu, formado a partir da volta do exílio babilônico (538 aC), e no qual se formou o cristianismo.
O termo judeu, portanto, não se restringe apenas e tão somente aos adeptos de uma religião. (Muitos judeus não são religiosos.)
4. O QUE É ANTISSEMITISMO?
Acrescida do prefixo anti–, a palavra semitismo dá origem ao termo antissemitismo. Note que o prefixo é usado com o sentido de ‘contra’, ‘oposição’ ou ‘de encontro a’.
Estamos a falar agora de uma ideologia ou de práticas políticas que são contrárias aos semitas (árabes, hebreus, aramaicos etc.). Trata-se de uma ideologia preconceituosa, visto que detrata, persegue ou ataca os semitas pelo simples fato de eles serem semitas. Trata-se de mais um exemplo daquilo que genericamente rotulamos de racismo [2].
4.1. O antissemitismo surgiu na Europa.
A intolerância, o preconceito e, mais recentemente, a perseguição sistemática aos semitas não surgiram no Oriente Médio ou na África.
O antissemitismo surgiu na Europa. Curiosamente, porém, um dos países do mundo onde o antissemitismo é mais pulsante hoje em dia é justamente Israel – ver, e.g., o artigo “Somos um povo melhor que os árabes”, de Sayed Kasua, publicado neste GGN, em 4/12/2017 [3].
Os ideólogos do sionismo, no entanto, não se cansam de inverter o tabuleiro. Veja: A placa onde se lê ANTISSEMITISMO está sempre por perto e as autoridades israelenses não perdem a oportunidade de erguê-la. Qualquer que seja o tema ou o tom do debate, todo e qualquer crítico que caia na besteira de dizer que o governo israelense não é a perfeição encarnada corre o sério risco de ser rotulado de antissemita. E não é só isso. Além de rotulado, a depender do contexto, o sujeito se converte em alvo e passa a ser perseguido. Nesses casos, o mínimo que se exige é que o sujeito perca o emprego e caia no ostracismo. E assim tem sido...
É mais do que paranoia: É uma política ardilosa, um modo de se manter livre das amarras ou dos freios civilizatórios. O pior é que essa postura paranoica funciona no plano político: Enquanto alguns críticos se cansam dessa ladainha e terminam abandonando a discussão, outros logo se calam. Não são raros também os casos daqueles que passam a defender o sionismo por conveniência profissional.
Essa política insidiosa também funciona no plano institucional. Pare, pense e pesquise: sempre no papel de vítima do antissemitismo, quantas determinações da ONU o governo de Israel se viu obrigado a acatar desde a sua criação, 75 anos atrás?
5. ATERRORIZAR, EXPULSAR, OCUPAR.
Na verdade, os governantes israelenses são profundamente antissemitas. Pare, pense e pesquise mais uma vez: declarações racistas contra os palestinos (e árabes em geral) aparecem na mídia todos os dias. Ocorre que o antissemitismo não se restringe às declarações midiáticas. O antissemitismo vagueia pelas ruas de Israel.
Estabelecido formalmente em maio de 1948, o estado de Israel traz consigo as marcas dos seus pecados originais. A pilhagem de terras é um dos mais óbvios. Basta ver como o território israelense só fez crescer desde a sua criação formal. Os territórios ocupados pelos palestinos (e.g., Gaza e Cisjordânia), em compensação, só fizeram encolher.
O que se passa hoje em Gaza, aliás, seria mais um passo em direção à solução final. O protocolo é conhecido e já foi usado em outras ocasiões: (i) Expulsar os moradores locais (e.g., aterrorizando-os ou destruindo a infraestrutura e inibindo as chances de que se estabeleça uma sociedade local minimamente sustentável); e (ii) Tomar para si o território abandonado, estimulando a ocupação por colonos vindos de fora.
A ida de colonos para Israel é um capítulo particularmente tenebroso nessa história. Um capítulo pouco ou nada discutido. No entanto, ao menos dois aspectos deveriam merecer alguma atenção por parte da imprensa brasileira. Primeiro. Para ganhar um pedaço de terra roubada e ser aceito como colono, não é necessário que o sujeito se reconheça como judeu, muito menos que seja adepto da religião judaica. Evidentemente, porém, nem todos são bem-vindos. O critério decisivo é outro: É necessário que o candidato venha do lugar certo, ou melhor, é necessário que ele tenha os genes certos [4].
6. EUGENIA AO ESTILO ISRAELENSE.
Em termos estritamente biológicos, podemos olhar para os árabes, os hebreus e os aramaicos como linhagens (ou complexos de linhagens) filogeneticamente próximas. Mas não são linhagens isoladas e evolutivamente independentes. Além da proximidade geográfica e de certos traços culturais comuns, basta ver que eles ainda são bem parecidos fisicamente.
Proximidade cultural e semelhança física das quais os governantes israelenses há muito decidiram se afastar. E isso passou a ser adotado como uma política de estado. De fato, as políticas adotadas tendem a mudar (e esse processo já está em curso) a composição genética da população israelense. O jeito brando de fazer isso é por meio do controle da imigração – e.g., os fenótipos de interesse, notadamente gente de pele clara (e.g., russos e ucranianos – ver aqui), são estimulados a se fixar e a se misturar com a população local (a despeito de o migrante ser ou não judeu). É um processo seletivo, não muito diferente do modo como granjeiros e pecuaristas escolhem os reprodutores que darão origem à próxima geração dos seus plantéis.
No outro extremo do espectro, os governantes inibem ou proíbem os casamentos envolvendo migrantes portadores de fenótipos indesejados (e.g., chineses e africanos). Dois exemplos. Na chegada ao país, a depender do lugar de origem, os operários recrutados devem antes assinar um termo de compromisso por meio do qual tomam ciência de que são proibidos de manter relações sexuais com mulheres israelenses, mesmo com as prostitutas (ver aqui). Ainda nesse contexto, pode acontecer de os trabalhadores estrangeiros serem expulsos sob a alegação de que a presença deles no país passou a representar uma ameaça à manutenção de Israel como um “estado democrático e judeu” (para uma declaração recente, ver aqui).
A pergunta que se impõe é: De onde veio a inspiração para normas tão meticulosas e rígidas? De algum livro sagrado, de algum artigo de genética da era stalinista ou de algum manual nazista?
7. CODA.
Assentada na pilhagem de terras palestinas e em uma montanha de cadáveres, a sociedade israelense é governada hoje por aquele que talvez seja o estado mais racista, mais paranoico, mais cínico e mais beligerante do mundo.
*
NOTAS.
[*] Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os quatro livros anteriores do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir algum volume específico ou para mais informações sobre as obras, faça contato com o autor pelo endereço felipeaplcosta@gmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros anteriores, ver aqui.
[1] Três das caracterizações encontradas no Aurélio (2009, p. 1160) são as seguintes: “judeu. [Do lat. judaeu < gr. ioudaîos < hebr. Iehudi, ‘descendente de Iehudá’, < antr. hebr. Iehudá, um dos doze filhos de Israel; tribo desse filho que deu origem ao reino de Judá.] 4. O natural ou habitante da Judeia. 5. Aquele que segue a religião judaica. 6. Indivíduo que pertence ao povo, à comunidade dos judeus; israelita.”
[2] O racismo já estaria presente em grupos humanos desde os primórdios. Há até mesmo quem defenda a ideia de que, em maior ou menor grau, a xenofobia seja um traço inerente ao animal humano. Isso, no entanto, ajudaria a entender tão somente a origem da xenofobia – digo: naturalizar a intolerância diante de estrangeiros não abonaria nem justificaria a sua manifestação nos dias de hoje.
[3] Humilhações, roubos, torturas e assassinatos fazem parte do dia a dia dos palestinos. Os responsáveis diretos por esses crimes incluem soldados, mas também civis, em especial os colonos vindos de fora e que são alocados em terras roubadas. Por que isso acontece? Por que o governo incentiva. A motivação última do governo é econômica e política. No plano imediato (ideológico), porém, é necessário ocultar e mentir. Afinal, seria um tanto constrangedor para os patrocinadores justificar o apoio que dão ao governo de Israel alegando que os israelenses estão a roubar as terras dos palestinos. Por isso, é necessário criar alguns dragões, como os grupos terroristas. Dia após dia, noite após noite, as autoridades israelenses trabalham para fixar uma estrela vermelha no peito dos palestinos. Propagam ódio e perseguição. E a propaganda funciona: aos olhos de parcelas expressivas da população israelense, todo e qualquer palestino (incluindo crianças e bebes de colo) é visto hoje como uma ameaça, um bárbaro, um assassino em potencial.
[4] Diferenciar judeus de não judeus foi, desde sempre, um problema, assim como ocorre com outras coletividades igualmente plásticas e fluídas, como raça e espécie (ver, e.g., Costa 2019). Ainda hoje não há uma definição consensual, nem mesmo em Israel. Há quem defenda a autodeclaração, mas há também quem defenda uma solução ‘científica’, envolvendo a busca e a identificação de ‘genes judeus’ (ver, e.g., Falk [2015] e Kohler [2023]). Tudo isso me soa muito mal, mas não creio que a imprensa brasileira tenha interesse ou sequer competência técnica para colocar o dedo nesse circo de horrores.
REFERÊNCIAS CITADAS.
++ Costa, FAPL. 2019. O que é darwinismo. Viçosa, Edição do Autor.
++ Falk, R. 2015. Genetic markers cannot determine Jewish descent. Frontiers in Genetics 5: 462.
++ Ferreira, ABH. 2009. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, 4ª ed. Curitiba, Positivo.
++ Kohler, NS. 2023. What are Jews: interrogating genetic studies and the reification of race. Journal of Anthropological Sciences 101: 185-99.
[1] Três das caracterizações encontradas no Aurélio (2009, p. 1160) são as seguintes: “judeu. [Do lat. judaeu < gr. ioudaîos < hebr. Iehudi, ‘descendente de Iehudá’, < antr. hebr. Iehudá, um dos doze filhos de Israel; tribo desse filho que deu origem ao reino de Judá.] 4. O natural ou habitante da Judeia. 5. Aquele que segue a religião judaica. 6. Indivíduo que pertence ao povo, à comunidade dos judeus; israelita.”
[2] O racismo já estaria presente em grupos humanos desde os primórdios. Há até mesmo quem defenda a ideia de que, em maior ou menor grau, a xenofobia seja um traço inerente ao animal humano. Isso, no entanto, ajudaria a entender tão somente a origem da xenofobia – digo: naturalizar a intolerância diante de estrangeiros não abonaria nem justificaria a sua manifestação nos dias de hoje.
[3] Humilhações, roubos, torturas e assassinatos fazem parte do dia a dia dos palestinos. Os responsáveis diretos por esses crimes incluem soldados, mas também civis, em especial os colonos vindos de fora e que são alocados em terras roubadas. Por que isso acontece? Por que o governo incentiva. A motivação última do governo é econômica e política. No plano imediato (ideológico), porém, é necessário ocultar e mentir. Afinal, seria um tanto constrangedor para os patrocinadores justificar o apoio que dão ao governo de Israel alegando que os israelenses estão a roubar as terras dos palestinos. Por isso, é necessário criar alguns dragões, como os grupos terroristas. Dia após dia, noite após noite, as autoridades israelenses trabalham para fixar uma estrela vermelha no peito dos palestinos. Propagam ódio e perseguição. E a propaganda funciona: aos olhos de parcelas expressivas da população israelense, todo e qualquer palestino (incluindo crianças e bebes de colo) é visto hoje como uma ameaça, um bárbaro, um assassino em potencial.
[4] Diferenciar judeus de não judeus foi, desde sempre, um problema, assim como ocorre com outras coletividades igualmente plásticas e fluídas, como raça e espécie (ver, e.g., Costa 2019). Ainda hoje não há uma definição consensual, nem mesmo em Israel. Há quem defenda a autodeclaração, mas há também quem defenda uma solução ‘científica’, envolvendo a busca e a identificação de ‘genes judeus’ (ver, e.g., Falk [2015] e Kohler [2023]). Tudo isso me soa muito mal, mas não creio que a imprensa brasileira tenha interesse ou sequer competência técnica para colocar o dedo nesse circo de horrores.
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REFERÊNCIAS CITADAS.
++ Costa, FAPL. 2019. O que é darwinismo. Viçosa, Edição do Autor.
++ Falk, R. 2015. Genetic markers cannot determine Jewish descent. Frontiers in Genetics 5: 462.
++ Ferreira, ABH. 2009. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, 4ª ed. Curitiba, Positivo.
++ Kohler, NS. 2023. What are Jews: interrogating genetic studies and the reification of race. Journal of Anthropological Sciences 101: 185-99.
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