A origem da consciência: o 'eu' como produto da vida em grupo
Felipe A. P. L. Costa [*].
Nós, seres humanos, somos dotados de uma característica particularmente notável: a capacidade de autorreconhecimento. Mas não nascemos assim; trata-se de uma característica que se desenvolve ao longo dos dois primeiros anos de vida. Por volta de 2 anos de idade, os bebês humanos já reconhecem a si mesmos como objetos dignos de atenção. É a emergência do eu (self), como diriam os psicólogos [1].
Nas palavras de Piaget (Evans 1980, p. 55):
[N]o começo [do desenvolvimento da criança] você tem o Eu, o qual não se conhece a si mesmo; e você tem os objetos que não são permanentes; e as interações entre esses dois polos. O conhecimento não começa no Eu, e não começa no objeto. Começa nas interações. Desde que tais interações entre sujeito e objeto são formadas por ações isoladas, não coordenadas, não existem nem objetos, nem um sujeito. [...]
O desenvolvimento da consciência de si mesmo como sujeito ativo, de um lado, e o mundo dos objetos independentes, relacionados um ao outro, casualmente ou espacialmente, toma lugar a um só e mesmo tempo, quando a criança coordena mais e mais suas ações. Ela não pode tomar consciência de si mesma, sem, ao mesmo tempo, tomar consciência da independência dos objetos à volta dela, e vice-versa. É a mesma coordenação.
Mas não nos enganemos: o autorreconhecimento não é um traço biológico restrito aos seres humanos.
1. AUTOCONSCIÊNCIA OU CONSCIÊNCIA DE SI.
Em termos operacionais, o autorreconhecimento nos permite estabelecer uma linha divisória entre o eu (primeira pessoa) e o mundo, notadamente os outros indivíduos com os quais nós convivemos.
E mais: embora esteja relacionada com outros fenômenos mentais, não deve ser confundida com eles. Estou aqui a pensar no fenômeno da consciência e, mais ainda, no caso da autoconsciência (self-consciousness) ou da consciência de si (self-awareness) [2].
Diferentemente do que imaginam alguns, a autoconsciência também não é uma exclusividade humana. Chimpanzés e orangotangos passam no teste do espelho, por exemplo, uma evidência de que esses animais reconhecem a si mesmos como objetos dignos de atenção [3]. Há outros candidatos a entrar nesse clube, incluindo vertebrados não mamíferos e até mesmo alguns invertebrados.
Para os nossos propósitos, porém, o mais importante a registrar aqui seria o seguinte: até onde sabemos, todos os animais dotados de autoconsciência são também animais de hábitos sociais. Sim, todos eles vivem (temporária ou permanentemente) em grupos. E isso não parece ser um mero capricho da Mãe Natureza.
2. AUTOCONSCIÊNCIA COMO PRODUTO DA VIDA EM GRUPO.
Uma das hipóteses formuladas para explicar a origem da autoconsciência está assentada na ideia de que a dinâmica da vida social é bastante problemática. Digo: a vida em grupo impõe desafios ainda mais duros e permanentes que os desafios enfrentados por animais solitários. Nas palavras de Lei (2023, p. 6; tradução livre):
[I]nterações sociais, como colaboração, desentendimento, relações familiares e amizade, oferecem mais desafios cognitivos do que problemas físicos, como caçar alimentos de forma independente. Por isso, os animais sociais estão expostos a mais oportunidades de desenvolvimento cognitivo do que os solitários, que interagem mais frequentemente com desafios físicos menos desafiadores. À medida que uma espécie se torna cognitivamente mais avançada, devido ao seu ambiente social, o mesmo se dará com a sua capacidade de enfrentar sociedades mais complexas, o que, por sua vez, eleva suas capacidades cognitivas, contribuindo para a coevolução entre a complexidade cognitiva e a social. Isso proporciona às espécies sociais maiores capacidades cognitivas e, portanto, uma maior probabilidade de desenvolver autoconsciência.
É importante chamar a atenção para dois dos grandes desafios impostos pela vida em grupo: a necessidade de (1) ler os pensamentos e deduzir as intenções de outros indivíduos; e (2) calcular antecipadamente a repercussão e os desdobramentos das próprias atitudes perante os demais integrantes do grupo.
Alguns leitores podem estranhar o vocabulário usado acima, mas o que está em questão são experiências de vida bastante familiares a todos nós. Veja, por exemplo, este comentário de Fry (1978, p. 84; ênfase minha):
Duas pessoas que tenham vivido juntas por muitos anos acabam, habitualmente, trocando observações ocasionais sem qualquer atividade falante ou auditiva. Uma delas sabe o que a outra pretende dizer e age de acordo com isso, sem que nenhuma dê maior atenção à questão. Será esse um caso paranormal, de telepatia? [4] Não é necessário recorrer a tal explicação para esse fenômeno, pois o casal que se comunica sem se falar na realidade está fazendo o mesmo que todos nós fazemos quando falamos: vale-se do seu conhecimento sobre o que deve esperar.
Em suma, interações íntimas e complexas (e.g., criar, manter e solidificar redes de aliança) formariam um cenário particularmente propício ao desenvolvimento de uma mente inteligente e, mais especificamente, autoconsciente. Por sua vez, o desenvolvimento de mentes com esses traços teria permitido a emergência de um sem número de personalidades, todas únicas e distintas, e capazes de organizar e manter a integridade pessoal em contextos sociais.
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NOTAS.
[*] Este artigo contém material extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (no prelo). Outros trechos da obra já foram anteriormente divulgados – e.g., Livros, lentes & afins; Revolução Agrícola, a mãe de todas as revoluções; O que é cultural, afinal?; Quem quer ser um cientista?; Algumas notas sobre o método científico; As origens da política; Podemos aprender com os nossos erros; e Ciência, tecnologia, negócios. Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os quatro livros anteriores do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir os quatro volumes ou algum volume específico ou para mais informações, faça contato com o autor pelo endereço felipeaplcosta@gmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros anteriores, ver aqui.
[1] Dois comentários. Primeiro. De acordo com modelo proposto pelo psicólogo suíço Jean [William Fritz] Piaget (1896-1980), o desenvolvimento mental da criança passa por uma sequência fixa de etapas, correspondendo às seguintes fases da vida (Piaget 1976): (i) recém-nascido e lactante (0-2 anos) – inclui a etapa dos reflexos ou ajustes hereditários, dos primeiros hábitos motores e da inteligência sensório-motora; (ii) primeira infância (2-7 anos) – inclui a etapa da inteligência intuitiva, dos sentimentos interindividuais e das relações sociais de submissão aos adultos; (iii) segunda infância (7-12 anos) – inclui a etapa das operações intelectuais concretas e dos sentimentos morais e sociais de cooperação; e (iv) adolescência (12-15 anos) – inclui a etapa das operações intelectuais abstratas, da formação da personalidade e da inserção afetiva e intelectual na sociedade dos adultos. Segundo. Sobre o uso do termo self, eis o comentário de Thomas (1980, p. 11): “O Self em inglês é termo que, em sua significação, abrange o eu, a parte que age, e o mim, as atitudes que o indivíduo assume para com o eu.” E mais (idem, p. 11-2): “Trata-se de uma palavra interessante, formada há muito tempo, em período de maior ambiguidade social do que seria de se esperar. A raiz original era se, ou seu, pronome da terceira pessoa, simplesmente, e a maioria dos vocábulos que dele descendem, à exceção do próprio self, foi constituída para aludir a outras pessoas de certo modo interligadas. Se era também usado para indicar algo exterior ou à parte, resultando em palavras como ‘separado’, ‘secreto’ e ‘segregado’. De uma extensão da raiz, swedh, passou ao grego como ethnos, significando ‘gente como nós’, e ethos, ‘os costumes dessa gente’. ‘Ética’ significa comportamento de pessoas parecidas conosco, a nossa própria ética.”
[2] A literatura sobre o mistério da consciência é vastíssima e não é propósito desde livro adentrar nessa seara. Para um ponto de vista particularmente inspirador, ver Humphrey (1976); para caracterizações (em port.) da autoconsciência, ver, e.g., Searle (1998) e Trefil (1999).
[3] Sobre as origens (ontogenia e filogenia) da consciência, ver, e.g., Mashour & Alkire (2013); para um estudo pioneiro envolvendo o teste do espelho, Gallup (1970), e, para uma revisão recente, Lei (2023). Este último assim descreveu o teste (Lei 2023, p. 1; tradução livre): “No estágio final [do teste], [...] uma marca inodora é colocada em uma parte do corpo que normalmente não pode ser vista. Depois disso, um espelho é colocado diante do animal e, se ele investiga a marca usando o reflexo dela, isso é considerado uma evidência de autorreconhecimento. É importante estabelecer uma diferença entre autorreconhecimento e autoconsciência. O autorreconhecimento do espelho representa apenas a autoconsciência mais básica, não a autoconsciência plena. [...] Todavia, uma incapacidade de passar no teste do espelho não indica necessariamente uma falta de autorreconhecimento.”
[4] A telepatia talvez venha a se revelar um fenômeno natural legítimo (e.g., Sheldrake 1999).
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REFERÊNCIAS CITADAS.
+ Evans, RI. 1980. Jean Piaget: O homem e suas idéias. RJ, Forense.
+ Fry, D. 1978 [1977]. Homo loquens: O homem como animal falante. RJ, Zahar.
+ Gallup, G. 1970. Chimpanzees: self-recognition. Science 167: 86-7.
+ Humphrey, N. 1976. The social function of intellect. In: PPG Bateson & RA Hinde, eds. Growing points in ethology. Cambridge, CUP.
+ Lei, Y. 2023. Sociality and self-awareness in animals. Frontiers in Psychology 13: 1065638.
+ Mashour, GA & Alkire, MT. 2013. Evolution of consciousness: Phylogeny, ontogeny, and emergence from general anesthesia. Proceedings of the National Academy of Sciences 110: 10357-64.
+ Piaget, J. 1976. Seis estudos de psicologia. Barcelona, Barral.
+ ---. 1983. Piaget – Coleção Os Pensadores, 2ª ed. SP, Abril.
+ Searle, JR. 1998 [1997]. O mistério da consciência. RJ, Paz e Terra.
+ Sheldrake, R. 1999 [1995]. Sete experimentos que podem mudar o mundo. SP, Cultrix.
+ Thomas, L. 1980 [1979]. A medusa e a lesma. RJ, Nova Fronteira.
+ Trefil, J. 1999 [1997]. Somos diferentes? RJ, Rocco.
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