Os fuzilados
António Osório
Não apenas os de Goya,
estes que diariamente de olhos vendados
a morte, pela última vez, contemplam.
Remorso, demência, larva
de piedade, a venda, isso
que nem um segundo oculta?
O tiro na nuca, golpe
de misericórdia ou infinita dureza
de mergulhar num lago um insecto?
Vala comum, cremação,
o simples incêndio dos corpos
que fedem e ardem como monturos
tocados pelo calor solar,
que testemunham, que dignidade
asseguram ao deus do sacrifício humano?
Infâmia de ser, infâmia absoluta de matar.
Que castigo, pronta, pronta e felina justiça
mereceria o fanático homicida, o mandante?
A deslembrança, ser para si um cego,
nada lhe dizer a alma
sequer da casa onde nasceu
como se o sal a tivesse arrasado
e destruído as mais fundas raízes,
um cego que todavia reconhecesse sua mãe
e perdesse a língua, os lábios, o soluço,
um cego em cujos olhos, lambidos
por moscas impiedosas,
os próprios filhos vomitassem.
Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1981.
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