25 outubro 2006

Joquim

Vitor Ramil

Satolep
Noite
No meio de uma guerra civil
O luar na janela não deixava a baronesa dormir
A voz da voz de Caruso
Ecoava no teatro vazio
Aqui nessa hora é que ele nasceu
Segundo o que contaram pra mim

Joquim era o mais novo
Antes dele havia seis irmãos
Cresceu o filho bizarro
Com o bizarro dom da invenção
Louco, Joquim louco
O louco do chapéu azul
Todos falavam e todos sabiam
Quando o cara aprontava mais uma

Joquim, Joquim

Nau da loucura no mar das idéias

Joquim, Joquim

Quem eram esses canalhas

Que vieram acabar contigo?


Muito cedo

Ele foi expulso de alguns colégios

E jurou: “nessa lama eu não me afundo mais”

Reformou uma pequena oficina

Com a grana que ganhara vendendo velhas invenções

Levou pra lá seus livros, seus projetos

Sua cama e muitas roupas de lã

Sempre com frio, fazia de tudo

Pra matar esse inimigo invisível


A vida ia veloz nessa casa

No fim do fundo da América do Sul

O gênio e suas máquinas incríveis

Que nem mesmo Julio Verne sonhou

Os olhos do jovem profeta

Vendo coisas que só ontem fui ver

Uma eterna inquietude e virtuosa revolta

Conduziam o libertário


Dezembro de 1937

Uma noite antes de sair

Chamou a mulher e os filhos e disse:

“Se eu sumir procurem logo por mim”

E não sei bem onde foi

Só sei que teria gritado a uma pequena multidão

“Ao porco tirano e sua lei hedionda

Nosso cuspe e o nosso desprezo!”


Joquim...


No meio da madrugada, sozinho

Ele foi preso por homens estranhos

Embarcaram num navio escuro

E de manhã foram pra capital

Uns dias mais tarde, cansado e com frio

Joquim queria saber onde estava

E num ar de cigarros de uns lábios de cobra

Ele ouviu: “Estás onde vais morrer”


Jogado numa cela obscura

Entre o começo do inferno e o fim do céu

Foi assim que depois de muitas histórias

A mulher enfim o encontrou

E ele ainda ficou ali por mais dois anos

Sempre um homem livre apesar da escravidão

As grades, o frio, mas novos projetos

Entre eles um avião


O mundo ardia na guerra

Quando Joquim louco saiu da prisão

Os guardas queimaram os projetos e os livros

E ele apenas riu e se foi

Em Satolep alternou o trabalho

Com longas horas sob o sol

Num quarto de vidro no terraço da casa

Lendo Artaud, Rimbaud, Breton


Joquim...


No início dos anos 50

Ele sobrevoava o Laranjal

Num avião
construido apenas das lembranças

Do que escrevera na prisão

E decidido a fazer outros, outros e outros

Joquim foi ao Rio de Janeiro

Aos orgãos certos, os competentes

Tirar um licença


O sujeito lá responsável por essas coisas lhe disse:

“Está tudo certo, tudo muito bem

O avião é surpreendente, eu já vi

Mas a licença não depende só de mim”

E a coisa assim ficou por vários meses

O grande tolo lambendo o mofo das gravatas

Na luz esquecida das salas de espera

O louco e seu chapéu


Um dia alguém lhe mandou um bilhete decisivo

E, claro, não assinou embaixo

“Desiste”, estava escrito, “muitos outros já tentaram

E deram com os burros n’água

É muito dinheiro, muita pressão, nem Deus conseguiria”

E o louco cansado, o gênio humilhado

Voou de volta pra casa


Joquim...


No final de longa crise depressiva

Ele raspou completamente a cabeça

E voltou à velha forma com a força triplicada

Por tudo o que passou

Louco, Joquim louco

O louco do chapéu azul

Todos falavam e todos sabiam

Que o cara não se entregava


Deflagrou uma furiosa campanha

De denúncias e protestos

Contra os poderosos

Jogou livros e panfletos do avião

Foi implacável em discursos notáveis

Uma noite incendiaram sua casa

E lhe deram quatro tiros

Do meio da rua ele viu as balas

Chegando lentamente


Os assassinos fugiram num carro

Que como eles nunca se encontrou

Joquim cambaleou ferido alguns instantes

E acabou caído no meio-fio

Ao amigo que veio ajudá-lo, falou:

“Me dê apenas mais um tiro por favor

Olha pra mim, não há nada mais triste

Que um homem morrendo de frio”


Joquim...


Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Tango (1987), de Vitor Ramil. Os versos de Joquim são uma livre adaptação de Joey (Bob Dylan & Jacques Levy), do álbum Desire (1976), de Bob Dylan.

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