04 dezembro 2006

Filosofia política e poesia

Allan Bloom

1.

A função civilizadora e unificadora dos livros do povo, conduzida na Grécia por Homero, na Itália por Dante, na França por Racine e Molière e na Alemanha por Goethe, parece estar morrendo rapidamente. Um Marlborough podia dizer antigamente que formou seu conhecimento na história inglesa lendo apenas Shakespeare. Tal dependência de um poeta é hoje quase inconcebível. Desapareceu a consulta constante e a confiança num só grande livro ou autor, e o resultado não é só uma vulgarização do espírito cotidiano, mas uma atomização da sociedade, pois um povo civilizado se mantém unido por seu entendimento comum do que é virtuoso e ruim, nobre e abjeto.


Shakespeare poderia ainda hoje ser a fonte de uma educação dessa natureza e fornecer as lições necessárias em relação à virtude humana e às aspirações adequadas de uma vida nobre. Ele é respeitado em nossas tradições, e fala a nossa língua. Mas a simples posse de suas obras não é suficiente; elas devem ser lidas e interpretadas corretamente. Ninguém jamais poderia restabelecer a religião mosaica com base numa leitura da Bíblia feita pelos mais sábios críticos, nem poderíamos usar Shakespeare como um texto de moral e educação política com base em suas peças como elas são lidas pelos novos críticos.

(...)


2.

Shakespeare escreveu numa época em que o bom senso ainda ensinava que a função do poeta era produzir prazer, e a função do grande poeta era ensinar o que é realmente maravilhoso tendo o prazer como instrumento. (...)


A função do poeta é dupla – entender as coisas que ele quer representar e entender o público ao qual se dirige. Ele deve conhecer os verdadeiros problemas humanos permanentes, pois de outra maneira seu trabalho será superficial e passageiro. (...)


Schiller observou que os tempos modernos se caracterizam, de um lado, pela ciência abstrata, e de outro, pelas paixões não refinadas, e que os dois não têm nenhuma relação. Um homem livre e bom cidadão deve manter uma harmonia natural entre suas paixões e seu conhecimento; isso é o que significa ser um homem de bom gosto, e é justamente ele que não mais conseguimos formar hoje. Sabemos que uma ciência política que não capta o fenômeno moral é imatura, e que uma arte não inspirada pela paixão por justiça é trivial. Shakespeare escreveu antes da separação dessas coisas; percebemos que ele tem tanto a clareza intelectual como as paixões vigorosas, e que as duas não brigam dentro dele. Se vivermos com Shakespeare por algum tempo, talvez possamos captar novamente a plenitude da vida e redescobrir o caminho de sua unidade perdida.


Fonte: Bloom, A. [1991?] Gigantes e anões: ensaios (1960-1990). SP, Best Seller.

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