06 dezembro 2006

O parceiro Bandeira

Cacaso

Ninguém ignora que a primeira manifestação do menino carioca é o assobio, dizia Machado de Assis. E ninguém ignora que a poesia brasileira nasceu cantando, diria Mário de Andrade. A musicalidade, na poesia e na vida, é nossa linguagem nascente, ligada à pesquisa e criação de nossa identidade. É preciso ser livre para se pesquisar. E a pesquisa é a pesquisa da liberdade. Ousadia de afirmação pessoal na expressão. Lirismo.

Com Gregório de Matos, Gonzaga, Silva Alvarenga e Caldas Barbosa, prepara-se uma invasão de melodia no verso brasileiro, dotando-o de uma fluidez natural, desintelectualizando a percepção lírica. Firma-se uma tradição de poesia vinculada às regularidades e irregularidades rítmicas, sequiosa de música, pedindo parceria. Nossos primeiros poetas foram cantadores de modinhas e tocadores de viola. Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, e Varela, irão absorver e depurar essa sensibilidade, que, levada a extremos, ameaça dissolver na música os valores próprios da palavra.

A palavra melódica pede música. Dentro dessa família de lirismo, Manuel Bandeira é talvez o nosso caso mais completo. Mais complexo. Simplíssimo. Dizia ele: “Sim, gosto de ser traduzido, fotografado, e... musicado”. E, de fato, Bandeira sempre foi marcado pela preferência dos compositores. Sua obra foi e continua sendo musicada livre e fartamente, por todas as gerações. Villa-Lobos, Mignone, Moraes Moreira, Dorival Caymmi, Dori Caymmi, Camargo Guarnieri, Wagner Tiso, Ivan Lins, Jaime Ovalle, Joyce, Francis Hime, Radamés, Lorenzo Fernandez, Tom Jobim, Toninho Horta, e muitos outros.

Quais as razões desta preferência? Talvez isso explique o fato de Bandeira ter sido também, entre nós, o poeta que mais sacou as sutis implicações da parceira musical. Ele dizia: “Foi vendo que a musicalidade subentendida dos meus poemas desentranhada em música propriamente dita, que compreendi não haver verdadeiramente música num poema. Nunca a palavra cantou por si, e só com a música pode ela cantar verdadeiramente”. Esta “musicalidade subentendida”, espécie de indeterminação essencial, faz com que o texto possa conter, em potência, numerosas melosias. Ainda Bandeira: “Nem sempre a melodia despertada nos músicos pelos meus versos me parecia implícita no texto. Assim como certos poemas admitem pluralidade de sentido ou de interpretações, como que em qualquer texto literário há infinito número de melodias implícitas”.

Portanto, a música não é escrava da palavra, como se poderia pensar, mas é livre diante dela. O constrangimento natural da parceria é, no fundo, uma associação de liberdades. Isso é o que Bandeira pensa sobre a musicalização de seus poemas. Sobre escrever texto para melodia já composta, diz ele: “Nesse ofício costumo pôr a poesia de lado e a única coisa que procuro é achar as palavras que caiam bem no compasso e no sentimento da melodia. Palavras que, de certo modo, façam corpo com a melodia. Lidas independentemente da música, não valem nada, tanto que nunca pude aproveitar nenhuma delas”. Bandeira tinha grandeza e humildade. O texto que escrevia para uma canção, e no fundo ele sabia, também possuía aquela “musicalidade subentendida” dos textos que escrevia para livros. Azulão, texto escrito para melodia de Jaime Ovalle foi posteriormente musicado por Camargo Guarnieri e Radamés Gnattali. E talvez por outros mais.

Manuel Bandeira, o grande poeta clássico de nosso modernismo, o mais amado e lembrado por nossos compositores, não envelhece. (...)

Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Estrela da vida inteira (1986), de Olivia Hime.

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