À lira desprezo
Cláudio Manuel da Costa
1.
Que busco, infausta lira,
Que busco no teu canto,
Se ao mal, que cresce tanto,
Alívio me não dás?
A alma, que suspira,
Já foge de escutar-te:
Que tu também és parte
De meu saudoso mal.
2.
Tu foste (eu não o nego)
Tu foste em outra idade
Aquela suavidade,
Que Amor soube adorar;
De meu perdido emprego
Tu foste o engano amado:
Deixou-me o meu cuidado;
Também te hei de deixar.
3.
Ah! De minha ânsia ardente
Perdeste o caro império:
Que já noutro hemisfério
Me vejo respirar.
O peito já não sente
Aquele ardor antigo:
Porque outro norte sigo,
Que fino amor me dá.
4.
Amei-te (eu o confesso)
E fosse noite, ou dia,
Jamais tua harmonia
Me viste abandonar.
Qualquer penoso excesso,
Que atormentasse esta alma,
A teu obséquio em calma
Eu pude serenar.
5.
Ah! Quantas vezes, quantas
Do sono despertando,
Doce instrumento brando,
Te pude temperar!
Só tu (disse) me encantas;
Tu só, belo instrumento,
Tu és o meu alento;
Tu o meu bem serás.
6.
Vai-te; que já não quero,
Que devas a meu peito
Aquele doce efeito,
Que me deveste já.
Contigo já mais fero
Só trato de quebrar-te:
Também hás de ter parte
No estrago de meu mal.
7.
Não saberás desta alma
Segredos, que sabias,
Naqueles doces dias,
Que Amor soube alentar.
Se aquela ingrata calma
Foi só tormenta escura,
Na minha desventura
Também naufragarás.
8.
Nise, que a cada instante
Teu números ouvia,
Ou fosse noite, ou dia,
Jamais não te ouvirá.
Cansado o peito amante
Somente ao desengano
O culto soberano
Pretende tributar.
9.
De todo enfim deixada
No horror deste arvoredo,
Em ti seu tosco enredo
Aracne tecerá.
Em paz se fique a amada,
Por quem teu canto inspiras;
E tu, que a paz me tiras,
Também te fica em paz.
Fonte: Costa, C. M. [1986?] Poemas de Cláudio Manuel da Costa. SP, Cultrix. Poema originalmente publicado em 1768.
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