20 janeiro 2007

O que é musica hoje

Luciano Berio & Rossana Dalmonte

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P. [Dalmonte] – Seria interessante saber por que razão, a partir da morte de Beethoven, começou-se a falar e a escrever tanto sobre música.

R. [Berio] – Talvez porque a música deixou de ser uma atividade objetiva destinada a preencher funções sociais específicas e tornou-se, pelo menos nas intenções, veículo de expressões e idéias pessoais. A música viu-se conscientemente transportada para o universo dos signos, como se diz hoje, e das idéias. O compositor, como pintor e poeta, tornou-se um “artista” cujos ideais e cuja visão do mundo pareciam menosprezar a quinquilharia artesanal da profissão musical. Criou-se uma distância entre idéia e prática musical e o músico consciente teve que explicar e preencher essa distância para um público diferente, um público que pagava e queria não apenas ouvir uma sinfonia, mas reouvi-la. Apareceu então a Estética que veio em auxílio de quem falava e escrevia sobre a música e arte, tanto ontem como hoje. O compositor começou a falar de seu trabalho e de suas idéias a partir do momento em que deixou de fazer música de maneira direta, deixou, ou quase, de ser um músico prático, de ser executante e de tocar cotidianamente um instrumento. Chopin e Brahms, grandes pianistas, não nos deixaram escritos. Messiaen, grande organista, também não (a sua Technique de mon langage musical é estranha até no título). Mas Schumann (que feriu um dedo e não podia mais tocar piano), Berlioz (que tocava guitarra muito mal), Wagner e Schoenberg (que certamente não eram virtuoses de seus respectivos instrumentos, piano e violoncelo), deixaram-nos uma quantidade significativa de escritos. Penso que sobre esse assunto (que se resume da distinção capitalista entre trabalho intelectual e trabalho manual) valeria a pena fazer pelo menos uma tese acadêmica numa faculdade de Sociologia – sem esquecer que a partir de Beethoven todos os aspectos do processo criativo, até os mais ínfimos, começaram a ter um preço: os manuscritos do compositor, os óculos do compositor, o cartão postal do compositor, a cama do compositor, seu boletim escolar, sua casa, sua cadeira, seus hábitos e, naturalmente, suas entrevistas.

Tentar definir a música – que em todo caso não é um objeto mas um processo – é quase como tentar definir a poesia, ou seja: trata-se de uma operação felizmente impossível, considerando a futilidade de querer estabelecer a fronteira entre o que é música e o que não é, entre poesia e não-poesia. Com a diferença, porém, de que na poesia a distinção implícita entre língua e literatura, entre língua falada e língua escrita, torna mais fácil a definição dessa fronteira. Talvez a música seja justamente isto: a procura de uma fronteira constantemente deslocada. Nos séculos anteriores, por exemplo, a “fronteira” tonal delimitava territórios precisos e profundos. Hoje os territórios são vastíssimos, as fronteiras muito mais móveis e de natureza diversa. Aliás, muitas vezes, o objetivo da pesquisa musical e da criação não é sequer a definição de uma fronteira perceptiva, expressiva e conceitual, mas antes sua eliminação, ou seja: a eliminação como ação “vanguardística”. E neste caso, paradoxalmente, torna-se fácil responder à sua pergunta: a música é tudo aquilo que se ouve com a intenção de ouvir música.
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Fonte: Berio, L. & Dalmonte, R. [1981?] Entrevista sobre a música. RJ, Civilização Brasileira. Sobre a música de Beethoven, clique aqui.


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